quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Segundo domingo da Paixão: Domingo de Ramos

Padre Leonardo Castellani



O segundo comentário a Passio de São Mateus que havíamos prometido versar sobre a legalidade da morte Cristo.
Faz algum tempo liamos em um diário americano uma noticia curiosa: que os israelitas de Nova York queriam fazer uma revisão jurídica do processo de Cristo; quer dizer, reunir outra vez o Sinédrio, rever testemunhas e provas, e dar uma sentencia definitiva. Não se isso se fez. O curioso seria que o houvessem feito e houvessem novamente condenado a morte o Nazareno esse, que tanto tem dado o que fazer. A verdade é que em todo rigor deviam fazer isso; porque se chegassem a absolve-lo, teria que tornar-se todos cristãos; ou melhor dito, já o seriam.
Mas se o fizeram, o provável é que a sentença não seria nem guilty, nem non guilty; senão uma sentença de notproven ou out of legality: nulo por irregularidade de forma jurídica.
O processo de Cristo foi altamente ilegal.
O P. Luis de la Palma S. J. em sua clássica obra histórica sobre a paixão resenhou em uma página mestra as ilegalidades desse raivoso processo, que foi uma monstruosidade jurídica. O Sinédrio ou Tribunal Supremo se reuniu em um tempo pascal, algo que lhes estava vedada; se produziram testemunhos falsos e contraditórios; não houve testemunhas de defesa; não se deu ao réu um defensor; ao responder a uma pergunta do juiz, o acusado foi esbofeteado; se tomou uma resposta do réu como prova e o juiz se converteu em promotor; a resposta do Sinédrio não se deu por votação; se celebraram duas sessões no mesmo dia, sem a interrupção legal mandada entre a audiência e a sentença; o sentenciado foi diferido a autoridade romana, que não se reconhecia como legítima e que —como lhes advertiu o mesmo Pilatos— não tinha competência jurisdicional para delitos religiosos; a acusação promovida no Pretório ("Este se fez Deus e por isso deve morrer") não era delito nesse Tribunal; o réu foi açoitado, quer o começo da crucificação, antes da sentença ser prolatada; o delito de conspiração contra César, que promoveram depois, não era passível de crucificação, nem sequer de morte, como o era a sedição a mão armada e a traição ao exército imperial, coisas que manifestamente não fez Cristo; e finalmente deixando outras duas irregularidades menores, o néscio Plitados não proferiu a sentença oficial: Ibis ad crucem, senão que disse mal humorado: "Agarrem-nos vocês e façam o que quiserem ", coisa que um juiz não pode fazer, porque é abdicar seu oficio; depois de haver feito a fanfarrice de lavar as mãos como o que acreditava ficar de bem para com Deus, com os judeus e com sua mulher; e depois de haver proclamado publicamente a inocência do acusado: "Non invenio in eo culpam" ("Não encontro culpa nele"), o enviou ao patíbulo.
Não seu se esqueço algum coisa porque cito de memória; mas com a metade destas irregularidades o processo absolutamente nulo; e o juiz tinha o dever estrito de absolver ao acusado; fazer administrar quarenta menos um a Caifás pelos maus tratos que havia permitido infligir-lhe; e fazer varrer a golpe a turba com Barrabás e tudo mais, que ao pé da escola de mármore — não queriam pisar no pretório para não manchar-se e poder comer a páscoa, os anjinhos— bramavam como leões e toros ("Toros bravos me cercaram, livra-me da boca do leão", disse o Profeta), e atropelavam o decoro do Procônsul com ameaças absurdas. A único coisa que há que anotar-se quanto ao idiota Pilatos é que não recebeu nenhuma barganha —no se acordou— coisa que não se pode dizer de todos os juizes cristãos.
Mas ande se equivoca De La Palma é em atribuir aos fariseus todas estas falhas de "procedimento"; nesse caso não tem maldita. Se Cristo não era o que Ele dizia, havia que dar-lhe morte por cima de todo procedimento; e isso em virtude do sentimento religioso. Era um blasfemo; e por certo, o blasfemo mais extraordinário que existiu. Por isso, eles não tiveram reparos em des-responsabilizar Pilatos: "Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos". isto era um juramento tremendo, que os latinos chamavam exsecración. Nisso se sentiam seguros: "Acreditavam —perversamente— fazer um obséquio a Deus". Se o Nazareno não era Deus; nem o pastor Eróstrato que incendiou o templo de Diana de Éfeso, nem Calígula que violou uma Vestal (virgem, pitonisa), nem Henrique II que fez matar a Santo Tomás Beckett em sua catedral e durante sua missa, cometeram uma blasfêmia e um sacrilégio comparável: "Réu é de morte; nós sabemos que é réu de morte; pouco importa o que lhe digamos a este romanacho incircunciso ...". Se a acusação de conspiração contra César e a subseguinte ameaça não houvesse surtido o apetecido efeito, pouco lhes houvera importado acusar a Cristo de haver três assassinos para matar Pilatos, sua mulher e seu filho.
Porque a questão em causa não era a sedição contra César —que eles desejavam com toda a alma, os hipócritas— nem se Cristo havia dito que ia destruir o Templo e reedifica-lo em três dias — que eles sabiam não Ter dito— nem nada desse estilo. A questão real era: Cristo é o que ele disse ou não? Esta é a questão mais tremenda que se a posto na história da humanidade: questão de vida ou morte.
Todavia se põe e se põe continuamente; e a prova são os homens judeus de Nova York. O processo de Cristo se reproduz continuamente na alma de cada homem: Cristo é acusado, da testemunho de si, depõem contra Ele falsos testemunhos, maus sacerdotes O julgam e condenam, Judas o beija, imundos lhe fazem chacotas, e muitos pilatinhos o crucificam. É a questão de um simplíssimo sim ou não que se produz no mais profundo da alma: "Sim, é Deus. Não, não é meu Deus". Se não é meu Deus, é réu de morte... ¡Que desapareça, que seja crucificado, que seja sepultado e lacrado seu cadáver e que não se saiba mais dele nem de sua memória!...". Tremendo pensamento.
Os cristãos cremos que a dispersão secular do povo judeu —que agora se está por terminar— é a resposta aquela exacração dos fariseus: "Caia seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos". Porque "sobre nossos filhos"? Não é justo isso? Aqui há um mistério. Na realidade, todo judeu que por sua culpa não se torna cristão, da sua aquiescência a condenação de Cristo; porque eles tem em suas mãos as escrituras com todas as profecias (a peça mestra do processo, o testemunho que não se chamou) e ninguém tão bem como eles pode entender desta causa. Dizer isto parece duro e tremendo; e na realidade é. Mas a questão é esta: ou foi Deus ou não foi Deus, e não há evasiva nem resposta intermediária possível. Ou blasfemo, ou meu Criador e Senhor.
Deixemos em paz os judeus se não é para rogar por eles, como roga a igreja na Sexta Feira Santa: demasiadamente hão sofrido. O mal é a Segunda crucificação de Cristo ("Rursum crucifigentes Filium Dei") que fazemos nós cristãos. Em minha própria vida tenho bastante que considerar; mas isso não para contar aqui. Mas na vida pública das nações chamadas cristãs, desde a Reforma até aqui, um largo e infausto Vía Crucis executa ao Corpo Místico de Cristo. Os Caifás, os Judas, os Pedros, os Herodes, os Pilatos se multiplicam; e todos os gestos daquela nefasta façanha se reproduzem simbolicamente: Ao Cristo se nega, se calunia, se impreca, se açoita e se crucifica. E se sepulta.
As nações parecem no caminho de crucificar novamente a Cristo; e de gritar ao céu: "que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos".


"EL EVANGELIO DE JESUCRISTO", Bibliotaca Dictio, Vol 7, pag. 195, Buenos Aires, 1977

Programa de Santidade

Rda. Madre Marie Cronier – 1857-1937. Fundadora e primeira Abadessa do Mosteiro de Sainte-Scholastique de DourgneFrança.


Domingo, 8 de abril –

Sentido: Jesus falou-me muito das virtudes interiores. Ele deseja que não haja nem movimento, nem uma palavra sequer, por parte daquela de quem gosta tanto, que não seja regulada pela Sua Graça. Compreendi toda a extensão que ele dava às virtudes interiores, humildes, desconhecidas, escondidas.Compreendi sobre tudo que ele era a Luz e a Verdade. Inundava minha alma com seus divinos raios que lhe permitem perceber a santidade verdadeira, prática, profunda... Prometeu-me sua luz e disse-me que este era o dom maior que pudesse me dar neste mundo. Esta luz divina que ilumina, que revela a santidade, os preciosos segredos de Jesus, esta luz divina que traz o calor, o amor.Voltando às virtudes interiores, pediu-me que amasse muito essas humildes virtudes cuja existência ninguém suspeita e cuja beleza somente Ele, sozinho, pode conhecer, e acrescentou: nunca pronuncie uma palavra em teu próprio louvor, evite freqüentemente uma palavra, um gesto, um olhar; caminhe até perder de vista com essas preciosas virtudes escondidas; prefira o silêncio, ame passar despercebida, não pronuncie jamais uma palavra inútil, sempre comigo, sempre habilidosa em te esconder atrás do silêncio, da paz, do esquecimento das criaturas; caminhe, caminhe. A perfeição não tem limites – caminhe sempre mais para frente.Remova cada dia os menores grãos de poeira. Essas virtudes tão humildes, tão pequenas na aparência, são abismos que a alma pode sempre aprofundar; minha filha, essas virtudes tão humildes, tão modestas, são também tesouros que encantam meu divino Coração. Olhe para a minha divina Mãe e contemple esta obra-prima das virtudes interiores. Quero que nelas você progrida muito. Para tanto, seja amável, mas com uma suave gravidade e um tanto séria, seja paciente sem que se possa perceber tal ato de paciência de sua parte; sem que se possa descobrir se algo te contrista ou te irrita; seja tão boa que nada possa anuviar teu rosto, mas sempre com suave seriedade, seja tão caridosa que teus lábios nunca profiram a menor crítica; esteja sempre pronta a esquecer, a perdoar, a ajudar.Seja tão discreta que passe despercebida.Ao agir, faça pouco barulho; al falar, diga poucas palavras, submete tua vontade cada vez que for possível sem faltar aos deveres; aceita a opinião dos outros por condescendência, por virtude: teu Jesus dar-te-á tato, a finura necessários para agir no momento certo, sem fraqueza, sem abuso.Procura mortificar-se em cada encontro com tanta boa vontade e finura que somente Jesus seja testemunha.Procura ser esquecida, não fala de ti mesma nem bem, nem mal: tenha sempre um sorriso nos lábios e com tanta simplicidade que a própria virtude pareça natural aos olhos de todos; ficará minorada pela grandeza de sua própria perfeição.Tendo falado assim, Jesus pediu-me ainda a coragem paciente, generosa, constante, exigida por este esforço interior praticado, tão mortificante, tão escondido, tão extenso, tão perpétuo... Eu mesma notei algumas imperfeições, algumas palavras inúteis, uma precipitação exagerada numa ação, um instante de tristeza exagerada ao pensar na separação que tanto me fere.
Mas procurarei fazer melhor amanhã.
Jesus deu-me a entender que se tratava de um trabalho para toda a minha vida e que o importante era nunca estar satisfeita, nunca descansar.

9 de abril.

Ele me pede não fazer nada que seja inútil: vou me esforçar com afinco... nada de natural, tudo com acalma, tudo sem barulho, tudo com mansidão, mesmo se for interrompida vinte vezes, tudo sem vontade própria mas unicamente pela vontade d’ Ele, de tal forma que esteja pronta a tudo deixar, tudo abandonar; enfim, um desprendimento total de modo a não me deixar cativar nem por um instante, escolher as tarefas menos atraentes.

Entregar-se

Sta. Tereza Couderc


"Várias vezes, Nosso Senhor já havia me dado conhecer o quanto era útil, para o progresso de uma alma desejosa de perfeição, ENTREGAR-SE sem reserva à ação do Espírito Santo. Mas, nesta manhã, a divina Bondade dignou-se me agraciar com uma visão toda particular. Estava me preparando para começar minha meditação, quando ouvi o ressoar de vários sinos chamando os fiéis para assistir aos divinos Mistérios. Neste momento, desejei unir-me a todas as missas que estavam sendo celebradas e com este intuito, dirigi a minha intenção para que participasse de todas elas. Tive então uma visão geral de todo o universo católico e de uma profusão de altares nos quais se imolava, ao mesmo tempo, a adorável Vítima.O Sangue do Cordeiro sem mancha corria abundante sobre cada um desses altares que me pareciam envoltos numa leve fumaça que subia para o céu. Minha alma era tomada e penetrada por um sentimento de amor e de gratidão à vista dessa tão abundante satisfação a nós oferecida por Nosso Senhor. Mas também surpreendia-me muito o fato de que o mundo inteiro não se achasse santificado em conseqüência. Perguntava-me como era possível que o Sacrifício da Cruz, oferecido uma só vez, tenha sido suficiente para salvar todas as almas e que, renovado tantas vezes, não bastasse para santificá-las todas. Eis a resposta que julgo ter ouvido: - O Sacrifício é sem dúvida suficiente por si mesmo e o Sangue de Jesus Cristo mais que suficiente para a santificação de um milhão de mundos, mas às almas falta corresponder generosamente. Pois o grande meio para entrar na via da perfeição e da Santidade – é o de ENTREGAR-SE ao nosso Bom Deus.Mas que significa ENTREGAR-SE? Percebo toda a extensão desta expressão "ENTREGAR-SE", porém não posso explicitá-la. Sei apenas que é muito extensa e abrange o presente e o porvir.ENTREGAR-SE é mais que se dedicar; é mais que se doar; é até maior que se abandonar a Deus. ENTREGAR-SE, finalmente, significa morrer a tudo e a si mesmo, não se preocupar mais com o EU a não ser para mantê-lo sempre orientado para Deus.ENTREGAR-SE é ainda mais que não se procurar a si mesmo em nada, nem no espiritual, nem no corporal; quer dizer deixar de procurar a satisfação própria, mas unicamente o bel-prazer divino.É preciso acrescentar que "ENTREGAR-SE" significa, também, esse espírito de desapego que não se prende em nada, nem nas pessoas, nem nas coisas, nem no tempo, nem nos lugares. É aderir a tudo, submeter-se a tudo.Mas, talvez se acredita que isso seja muito difícil de se conseguir. Desenganem-se, não existe nada mais fácil de se fazer e nada tão suave de se praticar. Tudo consiste em fazer uma só vez um ato generoso, dizendo com toda a sinceridade de sua alma: "Meu Deus, quero ser inteiramente seu (sua), queira aceitar minha oferenda". E tudo será dito.Permanecer de agora em diante nesta disposição de alma e não recuar diante de nenhum dos pequenos sacrifícios que possam servir ao nosso progresso em virtude. Lembrar-se que SE ENTREGOU.Rogo a Nosso Senhor que forneça o entendimento desta expressão a todas as almas desejosas de Lhe agradar, inspirando-lhes um meio de santificação tão fácil. Oxalá fosse possível compreender de antemão toda a suavidade e toda a paz que se desfruta quando não se guarda reserva com nosso Bom Deus!De que forma Ele se comunica com a alma que O procura com sinceridade e que soube ENTREGAR-SE. Experimentem e vereis que lá é que se acha a felicidade procurada em vão alhures.A alma entregue encontrou o Paraíso na Terra, pois ali goza esta paz suave que constitui em parte a felicidade dos eleitos".

A oração

São João Maria Vianney (Cura d'Ars)


Bela obrigação do homem: orar e amar
Considerais, filhos meus: o tesouro do homem cristão não está na terra, senão no céu. Por isto, nosso pensamento deve estar sempre orientado para onde se encontra nosso tesouro.
O homem tem um belo dever e obrigação: orar e amar. Se orais e amais, havereis encontrado a felicidade neste mundo.
A oração não é outra coisa que a união com Deus. Todo aquele que tem o coração puro e unido a Deus experimenta em si mesmo como uma suavidade e doçura que o embriaga, se sente rodeado de uma luz admirável.
Nesta íntima união, Deus e a alma são como dois pedaços de cera fundidos em um solo, que já ninguém pode separar. É algo muito belo está união de Deus com sua pobre criatura; é uma felicidade que supera nossa compreensão.
Nós havíamos nos tornado indignos de orar, mas Deus, por sua bondade, nos permitiu falar com Ele. Nossa oração é o incenso que mais lhe agrada.
Filhos meus, vosso coração é pequeno, mas a oração o dilata e o faz capaz de amar a Deus. A oração é uma degustação antecipada do céu, faz com que uma parte do paraíso baixe até nós. Nunca nos deixa sem doçura; é como um mel que se derrama sobre a alma a dulcifica por inteiro.
Na oração feita devidamente, se fundem as penas como a neve ante o sol.
Outro beneficio da oração é que faz como que o tempo transcorra tão depressa e com tanto deleite, que nem se percebe sua duração. Olhai: quando era pároco em Bresse, em certa ocasião, em que quase todos meus colegas haviam caído enfermos, tive que fazer largas caminhadas, durante as quais orava ao bom Deus, e creia-me, o temo se me tornava curto.
Há pessoas que se submergem totalmente na oração como os pés na água, porque estão totalmente entregues ao bom Deus. Seu coração não está dividido. ¡Quanto amo a estas almas generosas! São Francisco de Assis e Santa Coleta viam a Nosso Senhor e falavam com Ele do mesmo modo que falamos entre nós.
Nós, pelo contrário, quantas vezes vamos a Igreja sem saber o que fomos fazer ou pedir! E, sem embargo, quando vamos a casa de qualquer pessoa, sabemos muito bem porque vamos. Há alguns que inclusive parece que inclusive dizem ao bom Deus: "Só duas palavras, para desfazer-me de ti..." Muitas vezes penso que quando vamos adorar o Senhor, obteríamos tudo o que lhe pedíssemos se soubéssemos pedir com uma fé muito viva e com um coração muito puro.

Charles Maurras, o grande doutrinador francês

Alexandre A. Pinto Coelho do Amaral*


Uma análise objetiva do pensamento do grande escritor da Action Française, revela, indubitavelmente, que as suas idéias representam no terreno político-ideológico, uma superação do positivismo tal como ele era entendido no último quartel do século XIX. O apelo à experiência sensível que constitui a realidade toda e que o espírito reproduz por meio de luz científicas, é substituído em Maurras pelo apelo à inteligência hierarquizadora e ordenadora, que descobre através da história as realidades criadoras, as realidades valiosas e perenes. Quer dizer; o racionalismo passa a superar o experimentalismo.
Em face desta posição inicial devem ser analisadas as doutrinas do Mestre. O combate à liberdade-liberal é inspirado, na essência, pela contradição que esta encerra em si: por um lado afirmando-se contra qualquer norma; por outro afirmando-se a si própria como norma. A apologia do nacionalismo, numa finíssima intuição dialética das relações entre indivíduo e Estado: «o homem chama-se sociedade» e por isso «todo o perigo social encerra um perigo para o indivíduo». A forma atual e corrente de sociedade é a Nação. Ou seja demonstrada a insubsistência da pura vontade autônoma, não parte Maurras para a supremacia de qualquer ser externo e opressivo, antes e justamente concebe como o ‘substractum’ próprio do homem a sua integração no todo social.Junto da razão, porém, descobre o autor de «Les Amants de Venise», um elemento diverso e oposto: é o sentimento. O sentimento deve subordinar-se à razão, sem dúvida, mas não é a ela redutível, nem ambos podem unir-se em qualquer síntese superior (o paganismo de Maurras, segundo ele próprio o confessa, consiste na aceitação das dualidades antinômicas). Daí a separação, por vezes exposta em termos ambíguos e paradoxais, entre a moral e política. A primeira situa-se na ordem subjetiva, a segunda na ordem objetiva e intelectual. Na construção perfeita das coisas «a moral» torna-se «uma política suprema», pela interiorização na consciência das verdades sociais; mas tal interiorização reclama — uma crença, uma religião, e daí a aceitação pragmática da Igreja católica cuja idéia de Deus ao contrário da protestante, não constitui um perigo para a sociedade.Em tudo isto se revela a grandeza e a fraqueza de Maurras: o vigor rigoroso e subtil da sua crítica, a sua ausência trágica duma metafísica que mostrasse a razão e o sentimento numa harmonia recíproca, que a ambos alicerçasse, numa sólida concepção do Mundo e que desse plenitude sistemática às suas construções políticas. Metafísica essa que só poderia ser um vasto e compreensivo Idealismo objetivo «da linha Aristóteles-S.Tomás-Hegel».Tais são os princípios que inspiraram o subtil crítico do «Romantisme Féminin». À sua luz concluiu ele pela Monarquia tradicional (ditador e rei) e pelo classicismo, contra a República e contra o Romantismo. Foram estas atitudes, defendidas com uma energia a toda a prova, que o celebrizaram, criando-lhe os mais entusiásticos admiradores e os mais rancorosos inimigos.Toda a sua vida serviu sem tibieza à França e ao Rei desde os longínquos artigos da «Gazete de France» até às polêmicas continuadas de «l’Action Française». Abandonado e reprovado por aqueles a quem mais diretamente servia a sua ação, Maurras nunca soube desanimar ou recuar. Até ao fim ele combateu os cúmplices do Kremlin, os provocadores da guerra, os falsos ‘aliados’, os que arrastaram a sua Pátria à catástrofe, até ao fim sem uma hesitação, sem um gesto de temor.Hoje, o inimigo acérrimo e injusto da Alemanha, jaz num cárcere como traidor, enquanto os quatro estados confederados — judeu, maçon, protestante e meteco — de novo tripudiam na pátria de S. Luís e Joana d’Arc; hoje as multidões esquecidas não recordam mais os mártires do 6 de Fevereiro, nem os de Oran e Mers-el-Kibir, e alanceadas pelo medo aglomeram-se, timidamente, em volta dum dos responsáveis pelo regresso da Democracia a terras de França. Sim, hoje jaz no cárcere Charles Maurras!Mas não serão as vinganças rancorosas, nem as calúnias grosseiras, nem os uivos de insaciáveis ódios que conseguirão apagar do firamento da inteligência o brilho da sua admirável obra, nem da recordação de todos nós e a lição inexcedível e o exemplo sem par da sua ação e da sua vida.
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Politique d`abord
Quando dizemos politique d`abord, dizemos: a política primeiro, primeiro na ordem do tempo, de modo algum na ordem da dignidade. É o mesmo que dizer que a estrada deve ser tomada antes de se chegar ao ponto terminal; a flecha e o arco devem ser pegados antes de se ferir o alvo; o meio de ação precederá o centro do destino.

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Em política, a nossa mestra é a experiência.
A Monarquia
A necessidade da Monarquia demonstra-se como um teorema. Uma vez posta em postulado a vontade de conservar a nossa pátria francesa, tudo se encadeia, tudo se deduz num movimento inelutável.
A fantasia, a escolha, não têm aí cobrimento: se resolvestes ser patriotas, sereis obrigatoriamente monárquicos. Mas, se sois assim conduzidos à Monarquia, não tendes a liberdade de obliquar para o liberalismo, o democratismo ou os seus sucedâneos. A razão assim o quer. É preciso segui-la e ir até onde ela conduz.
O menor mal, a possibilidade do bem
Não sendo charlatães da Monarquia, como há charlatães da Democracia, nós nunca ensinámos que a Monarquia afasta, apenas pela sua presença, os males com que a guerra civil ou a guerra estrangeira, as epidemias físicas ou as pestes morais podem ameaçar as nações. O que dizemos é que, em países que são constituídos como a França, a Monarquia hereditária reúne não as melhores, mas as únicas condições de defesa contra estes flagelos. A Monarquia não é incapaz de erros, mas está melhor armada que qualquer outro poder para lhes fazer face, se prevenir, e em caso de desgraça regressar à verdade procedendo às reparações necessárias. Que uma brusca evolução econômica se imponha, pode a Monarquia presidir a ela, senão sempre com felicidade, ao menos com um mínimo de desgastes. Se tomados por um ciclone, como a história os viu por vezes desencadearem-se, se tenta alguma revolução brutal, a passagem é menos rude, a subversão menos completa, quando ele se produz sob um chefe, sob um príncipe cuja sucessão, estando de antemão regulada, excluirá todo o conflito de competidores. Assim, em Monarquia, os interesses superiores, os mais vastos, os mais graves, estão situados numa atmosfera bastante elevada e bastante serena para que seja de esperar que o furacão chegue até lá. Se, apesar de tudo, ele lá chegar, então, tanto pior! O gênero humano no máximo da sua miséria sempre terá gozado do máximo de garantias possíveis. Nessa desgraça imensa, o mal seria mais freqüente, mais completo e mais doloroso se o poder supremo estivesse colocado mais baixo.
Mesmo decaída, desmoralizada, desvairada, a Monarquia implica, ela mesma, o sentimento, e deixa após ela a noção duma responsabilidade, duma memória, duma previsão, tudo coisas de que os Parlamentos democráticos são desprovidos.
A Monarquia real confere à política as vantagens da personalidade humana: consciência, memória, razão, vontade; o regime republicano dissolve os seus desígnios e os seus atos numa coletividade sem nome, sem honra nem humanidade. Por isso, como a Monarquia representa naturalmente a capacidade do maior bem e do menor mal, a República representa a personalidade permanente do pior mal, do menor bem. Quanto aos elementos do mal e do bem, isso são dados que dependem das circunstâncias e dos homens: nenhum regime cria homens nem as suas circunstâncias intelectuais e morais.

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Sim, a República é o mal, sim o mal inevitável em República. E o que nós dizemos da Monarquia é que ela é a passibilidade do bem. O bem público, impossível em República; mesmo numa Monarquia que se afaste do seu fim, o mal público permanece muito menos nocivo que em república, pois está sempre sujeito a acabar, com o mau ministro ou o mau rei, e o mal republicano, sendo inerente à República, só com ela poderá terminar.

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Para a maior parte dos homens do séc. XIX, e hoje ainda absolutismo é sinónimo de despotismo, de poder caprichoso e ilimitado.É absolutamente inexacto: poder absoluto significa exactamente poder independente; a monarquia francesa era absoluta uma vez que não dependia de nenhuma outra autoridade, nem imperial, nem parlamentar, nem popular: mas nem por isso ela deixava de ser limitada, temperada por uma multidão de instituições sociais e políticas hereditárias ou corporativas, cujos poderes próprios a impediam de sair do seu domínio e da sua função. O seu direito confinava com uma multidão de direitos que a sustinham e equilibravam. A antiga França estava eriçada de liberdades.

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É preciso regressar a um regime que restabeleça a distinção entre Governo, encarregado de governar, e a Representação encarregada de representar.
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A República tem a necessidade de se impor às consciências, uma vez que repousa sobre as vantagens. Ela tem necessidade do entusiasmo dos seus súbditos, que são os eleitores a que, nominalmente, constitucionalmente, têm nas suas mãos o seu destino.
Ao contrário, a Monarquia existe pela sua própria força suâ mole stat. Não tem necessidade de consultar a cada instante um pretenso soberano eleitor. Basta-lhe, em suma, ser tolerada, suportada, e no entanto ela tem sempre mais e melhor, precisamente porque o seu princípio não a obriga a importunar as pessoas, a ei-las a intimar constantemente a acharem-na bela.
A República é uma religião. A Monarquia é uma família. Esta de nada mais necessita do que a achem aceitável. Aquela exige que sigamos os seus ritos, os seus dogmas, os seus sacerdotes, os seus partidos.
O Rei
Corruptível enquanto homem, o Rei tem como Rei uma vantagem imediata e sensível em não ser corrompido: a sua regra de sensibilidade é de se mostrar insensível a tudo o que não afete senão o particular, o seu gênero de interesse é o de ser naturalmente desprendido dos interesses que, abaixo dele, solicitam todos os outros: este interesse é o de se tornar independente.O Rei pode-o desfazer, pode-o esquecer. Ponhamos as coisas no pior. Um espírito medíocre, um caráter fraco expõe-no ao erro e ao desprezo. Nada disso importa! O seu valor, o valor de um homem é incomparavelmente superior ao da resultante mecânica das forças, à expressão de uma diferença entre dois totais.Pouco que valha o seu carácter ou o seu espírito, ainda assim ele é um carácter, um espírito, é uma carne de homem, e a sua decisão representará humanidade, enquanto que o voto de 5 contra 2 ou de 4 contra 3 representa o conflito de 5 ou de 4 forças contra 2 ou 3 outras forças. As forças podem ser, nelas mesmas, pensantes, mas o voto que as exprime não pensa: quanto a ele, não é uma decisão, um juízo, um acto corrente e motivado, tal como o desenvolve e encarna o Poder pessoal de uma autoridade consciente, nominativa, responsável.
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Este poder julga em qualidade. Aprecia os testemunhos em lugar de contar as testemunhas.Bem ou mal, é assim que ele procede, e este processo é, em si, superior ao processo de adição e subtracção.Tendo interesse em saber a verdade afim de fazer justiça, ele encoraja uns, tranquiliza outros e por vezes não ouve senão um, se um só lhe parece digno de ser ouvido. Se for caso disso, ele defende-o contra as ciladas e as tentações dos poderosos. Este discernimento humano dos valores intelectuais e morais difere, como o dia da noite, do processo cego e grosseiro das democracias. A idéia de tudo reduzir a uma espécie de combate singular ou a uma batalha geral dos interesses em causa é uma regressão, reflete sob uma força nova e muito menos bela, aqueles duelos judiciários de que os predecessores de S. Luís já se mostravam indignados.Só a barbárie pode ter confiança nas soluções das maiorias e do número. A civilização faz intervir, sempre que possível, o discernimento da verdade, o culto do direito. Mas isso supõe que o Um, tomado por juiz e por chefe, se distingue das forças chamadas a ser arbitradas por ele. O soberano não é súbdito, o súbdito não é o soberano. Misturando-os, a democracia baralha tudo, complica tudo, retarda tudo, e a sua degressão devolve tudo aos mais baixos estádios do antigo passado.

*Tradução e seleção de Alexandre A. Pinto Coelho do Amaral (In Mensagem, n.º 8, págs. 7/8, 15.12.1947)

Uma vela na escuridão

Gustave Thibon


"O sorriso não é algo devido, senão um favor, uma graça, a forma de converter um encontro em luz".

É a hora do descontentamento em todas suas formas, desde a lamentação resignada até a sublevação manifesta. Velhos e jovens se conciliam para denegrir o presente: uns sentem nostalgia do passado e outros colocam toda sua esperança nas mudanças que aportará o porvir. Em todos os graus da escala social, as pessoas lamentam de sua sorte e se esgotam em criticas. Em suma, ninguém está contente com nada, salvo de si mesmo, pois, quem aceita sua parte de responsabilidade nos males que deplora?
Ao sair de uma reunião impregnada por completo deste ambiente taciturno, o azar de uma leitura me fez reparar neste pensamento de Confúcio: "Mais vale acender uma luz, por pequena que seja, que maldizer a escuridão ".
A falta de vela

Um amigo a quem comentei esta sentença me respondeu: "De acordo, mas Confúcio viveu em uma sociedade descentralizada, de tipo agrícola e artesanal, onde o indivíduo podia fazer algo para remediar as desgraças da época. Quando anoitecia, se acendia uma vela; se fazia frio, podia-se recorrer a lenha nos bosque mais próximo e havia uma chaminé em cada casa para acender o fogo. Mas, o que se pode fazer hoje em dia em uma grande cidade quando um apagão de energia nos priva simultaneamente de luz e de calor?".
Igualmente, que recursos tem a iniciativa individual contra males como a inflação, o desemprego, uma greve dos correios ou de ferroviários? O mal adquiriu um caráter coletivo que exige igualmente remédios coletivos, quer dizer, medidas de conjunto que correspondem em grande parte aos poderes públicos. Daí a politização geral dos problemas sociais. "Que espera o governo para...?", diz espontaneamente o homem que passa pela rua. Em uma palavra, estamos em uma situação em que as pessoas, por falta de vela, não tem outro recurso senão maldizer a noite até que hasta que se solucione o problema da iluminação pública.
Reconheço — e este é o reverso angustioso de nossa técnica, as vezes libertadora pela potência dos meios que põe a nossa disposição, e alienante pelo excesso de centralização — que o homem moderno tem cada vez mais domínio sobre os elementos externos de seu destino. O que favorece por uma parte a passividade, pois se espera que as soluções venham de fora, e de outra o afã reivindicativo, o desejo de receber sempre mais. O indivíduo pode, sem embargo, acender uma vela nesta noite, ao menos estabelecendo o contato humano, tão reduzido hoje pela concentração e o anonimato tecnocrático. Nos lamentamos que a tecnocracia imponha aos homens relações quase unicamente funcionais. Mas depende de cada um de nós remontar este obstáculo. Ofereço como prova dois exemplos opostos.
Intercâmbio luminoso

Me encontrava faz alguns meses em uma oficina de correios. Uma anciã que desejava enviar uma carta disse timidamente a funcionária: "Esqueci meus óculos, teria a bondade de preencher meus dados?". A empregada, com um olhar em que se unem a frieza pessoal e a indiferença administrativa, responde irritada: "Crê que tenho tempo para fazer seu trabalho? Olhe o impresso e verá que diz: preencher pelo usuário". Ainda estou vendo a pobre anciã retirar-se (depois pude ajudá-la), andando mais devagar e com o ânimo gelado por esta acolhida glacial.
Outra oficina de correios da mesma cidade. Detrás de um dos guinches mais freqüentados, uma jovem tranqüila, amável, recebe a cada um com um sorriso espontâneo e acolhedor, desconhecido inclusive entre os comerciantes mais zelosos, porque tal sorriso se dirige não ao cliente, senão ao ser humano. Após fazer os envios postais aos quais tinha direito pagando as tarifas usuais, levei comigo esse sorriso inesperado que não era algo devido, senão um favor, uma graça. E, ademais, me senti disposto a sorrir aos interlocutores que devia encontrar durante a jornada, pois o bom humor, a atenção, a afabilidade, provocam reações em cadeia do mesmo modo que a indiferença ou a animosidade.
Este elemento de graça e gratidão (as duas palavras tem a mesma etimologia) confere as relações mais superficiais uma qualidade única e insubstituível. Graças a ele, o encontro anônimo de dois peões no tabuleiro social pode converter-se em um intercâmbio luminoso e vivo entre duas presenças. Este clarão de simpatia, que está ao alcance de todos em qualquer momento, ao dissipar a escuridão, nos evita maldizer.

Brasillach Al Paredón: Um irredimível pecado da França

Rodrigo Emílio (Poeta católico e nacionalista de Portugal)


Se datas há que não podem deixar de ser lembradas por nós anualmente sob pena de incorrermos num imperdoável pecado de omissão para com elas e para com aquilo, sobretudo, que representam, o 6 de Fevereiro de 1945 é, incontestavelmente, uma dessas datas.
Faz anos que a França se desembaraçou, pela lei da bala, de um dos seus filhos mais incómodos, mais exemplares - e mais dotados - . Faz anos que caiu, de pé, no fosso de Montrouge, varado pela salva de um pelotão de fuzilamento, um dos maiores artistas literários europeus de todos os tempos. Concretamente. Faz anos que De Gaulle caprichou em mandar abater a tiro de rajada Robert Brasillach. (Parece que é sina dos grandes poetas morrerem às mãos dos maus prosadores de patente militar...)
Estava-se numa França de hecatombe e mais «ocupada» (a matar...) do que nunca.
Com o pesadelo da chamada «Libertação» - há-de notar lapidarmente Maurice Bardèche - a nação gaulesa tinha contraído o mau (o péssimo) hábito de mandar passar pelas armas os seus escritores ou de pregar com eles na «choça», congratulando-se com essa forma expedita e pouco dispendiosa de resolver as suas crises de consciência colectiva.
Na eventualidade, está escrito que Brasillach venha a ser um dos intelectuais expiatoriamente sacrificados desde logo - e um dos cem mil e tal franceses, sumariamente chacinados de caminho - .
Condenado à morte mal e porcamente - depois de um julgamento político clamoroso que figura na história dos processos de acusação como modelo acabado de farsa judiciária - o poeta de Fresnes cada vez avulta mais como legenda de batalhas que tiveram talvez de se perder para poderem vir a ser ganhas.
Os seus crimes?Tanto quanto se sabe, respondeu por um único: o crime de ter amado a França e sonhado a Europa sem conta, peso e medida!Por outras palavras e abreviando razões: Brasillach cometeu tão-somente a injúria, e apenas reivindicou para si o direito, de pensar as circunstâncias ao invés do que mandavam as boas normas da intelligentzia demo-marxista de antanho. E bastou isso para o liquidarem.
De onde se segue que meia-dúzia de opções cardiais, assumidas com toda a galhardia e firmadas com inteira verticalidade no campo de batalha das ideias por homens de uma só convicção - como ele era - já então se pagavam caro. A pretexto delas, conferia-se foros de justiça aos morticínios, força de lei à iniquidade, e tudo era pesadinho na balança de uma justiça que funcionava avec un seul plateau.
Promoviam-se torneios de tiro ao homem a torto e a direito por todo o território e, por sistema, confiava-se o destino de seres tortuosamente incriminados ao cuidado e à pontaria (sempre certeira, sempre infalível) de pelotões de execução.
«O nível da magistratura - comentará sardonicamente Marcel Aymé - chegou a revelar-se, de uma maneira geral, francamente inferior ao dos próprios presos de delito comum» visando esses baixos tempos, e muito justa e justiceiramente invectivando o despudor da jurisprudência depuradora levada a cabo na sua pátria após a chegada dos respectivos «libertadores».
Na barra dos tribunais contavam-se entretanto pelos dedos da mão de um maneta as vozes verdadeiramente insubornáveis e realmente susceptíveis de se atreverem a erguer num levantamento de razões, mais ou menos cerrado, contra tanto desatino e desaforo juntos.
Brasillach veio a ter uma dessas vozes pelo lado dele, já que pôde encomendar, à eloquência de fogo de Maître Isorni, o encargo de o defender.Mas nenhum resultado (prático) deram, nem qualquer efeito surtiram, as imparáveis alegações e o verbo incontestado do grande causídico; como, também, de coisíssima nenhuma valeu ao poeta a petição de indulto que foi subscrita, a favor dele, por um sem-número de artistas e homens de letras seus compatriotas (e todos, por sinal, de altíssima craveira).É que a sorte de Brasillach já estava traçada e ditadinha de antemão, e o poeta previamente condenado a acabar como acabou: amarrado ao poste da pena capital, na força dos seus trinta e cinco anos, o corpo crivado de balas.
Uma consolação entretanto nos resta, mormente se admitirmos - como Céline - que «o mais terrível dos juizes é o condenado à morte»: a de sabermos que Robert Brasillach, ao cabo de tantas e tão longas horas de calvário e paixão celular, e de mortificação judiciária, observará, até ao fim, uma conduta exemplar, toda ela pautada por um estoicismo supremo, por uma coerência indefectível, por uma coragem inabalável; a consolação de tão-pouco ignorarmos que, chegado à hora da verdade, saberá ele, como poucos mais, encarar e receber a morte - de frente! - sem pestanejar.Daí que o seu luminoso exemplo nos contemple, e que a sua lição de sangue ainda agora nos norteie.Daí que a sua morte seja em nós uma chaga em carne viva, uma ferida sempre aberta - e que não fecha, nem mesmo à vista da estuante vitalidade que de todos e de cada um dos seus livros se desprende, se liberta e evade, sem cessar - .
E a atestar, de forma concludente, aquilo que afirmo, nós aí temos, em curso de impressão regular e sistemática, a edição integral das suas obras, que vai de vento em popa, num empreendimento da Plon.
O descerramento das mesmas tem-nos reservado, inclusivamente, de tempos a tempos, a grata surpresa de entrar em contacto com títulos e textos novinhos em folha, devidos ao punho (ainda agora fecundo!) do fabuloso polígrafo.
Foi esse o caso, relativamente recente ainda, do aparecimento de outro romance seu, intitulado Les Captifs: um original inebriante (apesar de inacabado), até agora rigorosamente inédito, e que a Plon em boa hora declarou a público.
Acima de tudo, porém, dá gosto ver como os livros daquele que foi, indubitavelmente, o maior mago da ficção da Europa literária de 40, já agora vão deixando de ser raridades inobtíveis, para andarem numa roda viva de reedições que a cada passo se esgotam (ao nível, designadamente, das consagratórias colecções de poche).
O significado de que se reveste semelhante fenómeno assinala assim o regresso mesmo do poeta fuzilado para junto daqueles, como nós, que sempre se recusaram a acatar ou a aceitar como terminante o veredicto da sua morte e muito menos, ainda, o do seu esquecimento.
De uma vez por todas, ei-lo que volta, realmente, ao convívio fraterno de quantos, não tendo deixado nunca de o frequentar, saúdam e entrevêem neste retorno como que a prova provada e o testemunho indesmentível da eterna jovialidade de Robert Brasillach.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Acontecimento Capital do Século XX

Paulo Pasqualucci

Esta breve porém densa reflexão histórico-teológica do professor Paulo Pasqualucci, antigo professor de Filosofia do Direito na Universidade de Perusia, na Itália, foi traduzida da publicação Si Si No No em sua versão francesa "Courrier de Rome" de dezembro de 2001.
A perda da fé pela Hierarquia católica

Até bem pouco tempo as pessoas mais ou menos cultivadas, em geral, estimavam que o acontecimento capital do século XX fora a Revolução Russa, com a conseqüência da expansão mundial do comunismo. Mas depois da queda do Muro de Berlim (1989) e a dissolução auto-imposta da União Soviética, de um dia para outro o esquecimento desceu sobre o marxismo e sobre sua realização pratica. Então, que outro acontecimento? Poderia haver um mais importante do que as revoluções, as duas Guerras Mundiais, os genocídios, a chegada do homem à lua e outros acontecimentos e fenômenos terríveis e extraordinários do século que terminou? Para nós há um acontecimento de extrema gravidade, capaz de suscitar a justa cólera de Deus em relação ao mundo: a perda da Fé por grande parte da hierarquia católica, que emergiu a partir do Concilio Ecumênico Vaticano II (1962–1965). Naturalmente nos referimos à fé tal como resulta dos documentos oficiais do Magistério atual.

O indício dessa perda da Fé é o louvor do mundo, inimigo do Cristo.
Como o mundo, por definição "reino do príncipe desse mundo", se entusiasmou tanto por um Concilio Ecumênico que deveria ex officio condenar seus erros e repetir a doutrina e a moral professada pela Igreja durante dezenove séculos? Os cantos de vitória pelo "espírito de abertura" dirigidos aos valores professados pelo homem contemporâneo não cessam, espírito de abertura manifestado pelo Vaticano II, que substituiu as condenações pela misericórdia, os anátemas pela compreensão, as conversões das almas ao Cristo pela procura do "dialogo": pôs assim o dialogo com o erro no lugar do dialogo tradicional com o errante para a salvação de sua alma. Esse mundo não se cansa de repetir, aliás em uníssono com a atual Hierarquia, que o Concilio representou (finalmente) o "aggiornamento" da Santa Igreja aos valores seculares que ela tinha rejeitado sempre, no passado: da ciência ao progresso, da liberdade de consciência à dignidade do homem, à fraternidade universal, à procura coletiva da felicidade terrestre. Mas se os filhos do Século louvam o Concilio daqueles que Nosso Senhor chamou para os converter pela pregação e o exemplo e se os filhos do Século o louvam precisamente porque aqueles decidiram ir ao encontro da "religião do homem" (Paulo VI), em suma, se eles o louvam pela inversão antropocêntrica que se produziu de modo aparentemente improvisado no catolicismo oficial, isso significa que esse Concilio não foi uma coisa boa e que nele penetraram as trevas do Século.

Prova: A mudança doutrinal
A atualização da doutrina da Igreja à realidade de nosso tempo, - dizem – não foi capaz de atacar o "deposito da fé", quer dizer os dogmas ensinados desde sempre. Esta é a tese oficial: "aggiornamento", sim; "mudança doutrinal", não. Trata-se, em todo caso, de uma tese necessária. A Santa Igreja – é de fé – sempre gozou da assistência do Espírito Santo no que diz respeito ao dogma da fé e a regra dos costumes. Mudar, mesmo parcialmente, a doutrina até aqui ensinada (sobre a fé e sobre os costumes) permitiria a evidente e inaceitável conclusão segundo a qual o Espírito Santo, no passado, teria se enganado (e com o Espírito Santo os Mártires, os Santos, os Papas) ou não teria assistido a Santa Igreja! É por isso que não pode haver novidade nesse ponto e se, por infelicidade, houvesse alguma, seria um erro para se retificar o mais rápido possível para a Gloria de Deus e a salvação das almas.
Existe toda uma literatura sobre as mudanças doutrinais introduzidas ou promovidas pelo Vaticano II, pouco conhecida do grande publico, mas que não é menos válida; uma antecipação, se assim podemos dizer, das tomadas de posição de muitos entre os Padres do Concilio, da minoria fiel ao dogma. Basta pensar no intelectual católico Romano Amerio, morto há alguns anos, ilustre especialista de Campanella e do pensamento ético de Manzoni, autor de uma magistral análise – traduzida em francês, inglês e espanhol – sobre os múltiplos desvios do pós-concilio, provocados na raiz (é a tese muito documentada de Amerio) pelas "novidades" ambíguas introduzidas pelo Concilio, algumas das quais com odor de heresia (1). Amerio e outros pesquisadores acentuaram as ambigüidades e duplo sentidos presentes nos documentos conciliares, que misturam as proposições fiéis ao dogma com outras que o alteram e algumas vezes o contradizem. E essa ambigüidade, já presente no ensinamento de João XXIII, ficou agarrada como uma película venenosa ao magistério pós-conciliar até hoje.

Pequeno florilégio dos erros e ambigüidades conciliares

1) Na constituição Lumen Gentium,que trata da noção própria de Igreja, aparece claramente uma definição errada da Igreja, porque afirma, no artigo 8, que a "Igreja do Cristo" subsiste na Igreja católica e que à "Igreja do Cristo" pertencem também " elementos de santificação" e "verdades exteriores à Igreja Católica". Durante dezenove séculos foi ensinado que a Igreja Católica é a única e verdadeira Igreja do Cristo, porque foi fundada por Ele e constitui Seu Corpo Místico, único depositário da Verdade Revelada, na continuidade do ensinamento dele recebido e transmitido por são Pedro e pelos apóstolos a seus sucessores e aos Padres da Igreja, mantido "de mão em mão" (Concilio de Trento ) até hoje. Quem disso se separou foi considerado – a justo titulo – como cismático (seitas e não Igrejas) e, mais, herético, se professou doutrinas contrárias ao depósito da fé (como os luteranos, anglicanos, etc...). As comunidades cristãs que se afastaram da Igreja não podem, enquanto tais, conceder a salvação a seus membros: tendo se separado da única e verdadeira Igreja, estão privadas da ajuda do Espírito Santo, sem a qual a salvação da alma não é possível. E todas as outras religiões o podem ainda menos. Não tendo sido fundadas pelo Filho de Deus (que além disso não querem reconhecer) não podem ensinar a Verdade que nos foi revelada sobre os divinos Mistérios e sobre os costumes.
Foi assim que a Santa Igreja sempre ensinou. Diz ela, por acaso, que aquele que não é católico está a priori condenado à pena eterna? Não, porque sempre ensinou que podemos nos salvar com o batismo de desejo: explícito, quando aquele que pede o batismo, ainda estando fora da Igreja, já vive se esforçando para fazer a vontade de Deus, mas morre antes de receber o batismo; implícito, quando, estando, sem falta própria, fora da verdadeira fé, o não católico vive no entanto procurando fazer em tudo a vontade de Deus, afim de não morrer em estado de pecado mortal: ele se salva em sua religião mas não por intermédio de sua religião (2). O Vaticano II contradiz essa doutrina quando insere na Igreja do Cristo, ao lado da Igreja católica, "elementos de santificação e de verdade" ou ainda de salvação, representados pelas outras denominações cristãs enquanto tais, com suas falsas doutrinas, já formalmente condenadas pelo Magistério. As seitas são assim impropriamente elevadas ao nível de "Igrejas": isso está expressamente no artigo 3 do decreto conciliar Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo. Trata-se de erro teológico manifesto ao qual se acrescenta também um erro de lógica no artigo 4 seguinte, onde se diz que só a Igreja Católica mantém "toda a plenitude dos meios de salvação" (não mais portanto a unicidade) enquanto que as "Igrejas" dos protestantes e dos cismáticos , enquanto tais constituindo "meios de salvação" utilizados pelo Espírito Santo (!), mostram "carências". Já que a salvação é evidentemente sempre a mesma (o céu), não se compreende segundo qual lógica os "meios de salvação" dos protestantes e dos cismáticos, afligidos por "carências" e pois deficientes, podem por si mesmos conceder a mesma salvação que aquela que é oferecida pelos meios de salvação da Igreja Católica, meios que não sofrem essas "carências".
Os heréticos e os cismáticos fariam então parte da "Igreja do Cristo": é por isso que não se lhes pede para retornarem à única e verdadeira Igreja , depois de terem abjurado seus erros. De fato, o decreto Unitatis Redintegratio não fala de "volta" mas de "conversão" com um sentido completamente anormal: "a unidade não deve se fazer pela volta dos separados à Igreja Católica, porém antes pela conversão de todas as Igrejas no Cristo total, o qual não subsiste em nenhuma delas mas é reintegrado mediante a convergência de todas em Um" (3). Uma falsa noção de "Igreja do Cristo" é pois a base do "dialogo ecumênico" com os ditos "irmãos separados". A unidade à qual esse "dialogo" aspira é pois falsa, necessariamente aberrante, inclusive no plano lógico, já que devem fazer viver juntos a verdade e o erro: a imutável Verdade revelada confiada à Igreja com os delírios do livre exame individual, do "simul iustus et peccator" e outras coisas semelhantes; a necessidade das obras meritórias para a salvação com sua negação; o casamento "divinitus" indissolúvel com aquele muito solúvel dos protestantes e ortodoxos e etc...
2) A Lumen Gentium foi em seguida marcada por uma concepção errônea da colegialidade episcopal. Com efeito, a suprema potestas iuridictionis sobre a Igreja, que é outorgada pelo direito divino ao papa, foi atribuída (pelo artigo 22) também ao colégio dos bispos em união com o Papa, coisa nunca antes admitida. Temos, pois, dois titulares do poder supremo (um autentico absurdo jurídico) com a única diferença de que os bispos não a exercem sem a autorização do Papa. Em substância, essa fórmula de compromisso deixa as conferências episcopais praticamente livres para exercer as amplas autonomias e competências que lhes são reconhecidas ex novo pelo Concilio (decreto Christus Dominus, artigo 37), sobretudo em matéria litúrgica, para experimentar e adaptar os ritos às culturas locais (constituição Sacrosanctum Concilium, artigos 22,39, 40). O controle da Santa Sé sobre o comportamento dos bispos se reduziu, em substância, a constatar as iniciativas das Conferencias Episcopais, agora que a "potestas" da qual estão investidos colegialmente os bispos é "suprema" como a do Papa. As Conferências Episcopais assim pulverizaram a autoridade de cada bispo (a titulo individual). A autoridade do Papa e a autoridade do bispo sofreram uma diminuição impressionante dando vantagem à autoridade do coletivo dos bispos, que goza mesmo de poderes legislativos. A constituição hierárquica da Igreja foi subvertida pela instauração de uma oligarquia episcopal.
Alem disso, a Lumen Gentium trouxe uma outra modificação (artigo 9 e seg.) à noção de Igreja, concebida não como "corpo místico do Cristo" (São Paulo) mas como "povo de Deus". Agora é a comunidade dos fiéis, presidida pelos padres, que vem a ser a Igreja, como se esta última devesse se constituir essencialmente a partir de baixo, nas assembléias que constituem a Igreja local, a soma das quais constitui a Igreja Universal. Assim a parte é tomada pelo todo – o "povo de Deus" pela totalidade da Igreja – com o fim de introduzir aí uma visão democrática, próxima ao modo de sentir dos protestantes heréticos, totalmente estranhos à Tradição, a qual, evidentemente, sempre se manteve firme sobre a origem e a natureza sobrenatural da Santa Igreja, manifestada e garantida por sua organização hierárquica.
3) Em contra partida, a constituição Gaudium et Spes que trata da relação da Igreja (a "Igreja do Cristo" ex. artigo 8 da Lumen Gentium) e o mundo contemporâneo, sofre manifestamente de um antropocentrismo difuso, totalmente incompatível com a sã doutrina. No artigo 3 está dito que o "objetivo da Igreja...é salvar o homem, edificar a humanidade... por conseqüência... o Concílio, proclamando a grandeza eminente da vocação do homem... oferece à humanidade a cooperação sincera da Igreja, em vista de instaurar essa fraternidade universal que corresponde a essa vocação". Note-se bem: não se pensa em "salvar o homem" pecador por meio da conversão ao Cristo, único que lhe torna possível a vida eterna (Mc. 16, 15-16; Mt.28, 18-20). Não. , Essa Hierarquia pensa conseguir a "salvação" pelo engajamento na instauração da terrestre e mundana "fraternidade universal", que não tem nada a ver com o fim sobrenatural próprio da Igreja. É a fraternidade das ideologias leigas apodrecidas pelo tempo, das quais a Gaudium et Spes não hesita em extrair outras sementes: "as vitórias da humanidade [e quais seriam elas?] são um sinal da grandeza de Deus e o fruto de seu inefável desígnio" (artigo 34); "o progresso terrestre... é de grande importância para o Reino de Deus" (artigo 39), etc. Essa exaltação do homem encontra acentos impressionantes no artigo 22: "O Cristo...desvela também plenamente o homem a si mesmo e lhe manifesta sua altíssima vocação". Parece que Nosso Senhor não veio para salvar os pecadores que cressem Nele e se convertessem ("não vim chamar os justos, mas os pecadores" Mc. 2, 17) mas para fazer os homens tomarem consciência dessa grande coisa que ele, homem, é, para exaltar o homem! A altíssima vocação do homem resultaria de afirmações como as seguintes: "que o homem é a única criatura que Deus quis por ele mesmo" (art. 24 cit.) enquanto que "com a Encarnação o Filho de Deus se uniu de certa maneira a todo homem" (art.22 cit.) Por isso os homens "todos, resgatados por Cristo, gozam da mesma vocação e do destino divino" (art. 29). Difunde-se aqui os germes de uma doutrina que nunca fora antes ensinada pela Igreja (porque Deus fez todas as coisa para "Ele mesmo", para sua glória e nada "para ela mesma", nem mesmo o homem) (4), e que essa doutrina terá, como é conhecido, seu desenvolvimento no pós-Concílio: que Nosso Senhor, com a Encarnação seria, em certo sentido, unido a todo homem, de modo a poder considerar – por esse único fato – que todos os homens já estariam resgatados, sem necessidade de sua conversão ou de seu retorno ao Catolicismo. E é com essa falsíssima premissa (uma verdadeira armadilha para seus partidários) que se instaurou o "dialogo" com as outras religiões, para poder constituir com elas também uma unidade planetária, sincretismo não menos monstruoso do que o que é procurado com os heréticos e os cismáticos.
4) O Concilio deveria, em seguida, ter repetido a doutrina de sempre sobre as duas fontes da Revelação (a Sagrada Escritura e a Tradição), sobre a inerrância absoluta da Escritura, sobre a plena e total historicidade dos Evangelhos. Mas na constituição Dei Verbum sobre a revelação divina, esses princípios fundamentais são antes expostos de modo ambíguo (nos artigos muito contestados 9, 11, 19), com expressões que, em um caso, (no artigo 11) se prestam a interpretações inteiramente opostas, da qual uma reduz a inerrância apenas à "verdade consignada na Escritura para nossa salvação". O que equivale na pratica a uma heresia porque isso põe em dúvida o caráter absoluto da inerrância das Escrituras Santas.
5) O Concílio, em seguida, pôs em obra a reforma litúrgica, cujos tristes efeitos estão, há anos, sob as vistas de todos. A antiqüíssima e venerável liturgia católica da Santa Missa, coração do Catolicismo, desapareceu, substituída por um novo rito, em língua vulgar, que os Protestantes puderam declarar teologicamente aceitável! De fato, seu Institutio (1969 e 1970) não nomeia nem o dogma da Transubstanciação nem o caráter propiciatório do Sacrifício (graças ao qual nossos pecados nos são perdoados) que também constitui um dogma de fé (Denz. Schönm 938/1739-1741;950/1753). Ao contrario o acento é posto, à maneira protestante, não no Sacrifício do Senhor mas no banquete que é o seu memorial ou antes o memorial da Ressurreição (mistério pascal) mais do que da Cruz, oferecido para a assembléia dos fiéis sob a presidência do padre, assembléia que agora concelebra no mesmo plano que este último. Nessa missa, o Sobrenatural da verdadeira Missa católica, a repetição incruenta do Sacrifício da Santa Cruz por meio da transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Senhor, desapareceu, sabendo-se que o Institutio se limita a mencionar uma "presença real" indiferenciada, não qualificada e não qualificadora, porque considera da mesma maneira a assembléia dos fiéis, a pessoa do ministro, a palavra do Cristo e as espécies eucarísticas. (5).
Os últimos estudos puseram em relevo de modo categórico porque o novo rito não pode de maneira nenhuma se definir como católico. Com efeito, "foi afastado do Rito da Missa tudo o que poderia ter uma relação com a pena devida pelo pecado, como também a finalidade propiciatória da Missa". Além disso, segundo a heterodoxa teologia "dita do mistério pascal", considerando o rito memorial capaz, por si só, de tornar presente, fora do tempo humano, os mistérios da morte e da ressurreição do Cristo, a reforma litúrgica modificou profundamente a estrutura ritual da Missa até o ponto de eliminar sua dimensão precisamente sacrifical (6). Isso tornou-se possível também pela utilização de uma noção de símbolo muito particular, de aparência esotérica - a nosso ver – que lembra as tenebrosas tanto quanto falaciosas doutrinas de um René Guénon e Cia.
Já que a teologia do mistério pascal considera a Eucaristia não mais como um sacrifício visível mas como um símbolo que torna misteriosamente presentes a morte e a ressurreição do Senhor e que permite, através destes fatos, o contacto com o Cristo glorioso, a presença do Cristo Sacerdote e Vítima cedeu o passo, na ação litúrgica, àquela do Kyrios que se comunica à assembléia (7). E uma tal, imprópria, quase mágica noção de símbolo, contribuiu para a elaboração de uma nova noção de Sacramento, naturalmente diferente daquela que pertence ao deposito da fé (8). Pois bem, essa incrível missa do Novus Ordo já estava antecipada nos artigos 7, 10, 47, 48, 106 da constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a reforma litúrgica, a qual, além disso, nos artigos 21, 24,37, 38, 40, 90, 119, considera também a simplificação do rito, para o tornar mais fácil, mais adaptado (!) à cultura profana, nacional e local; atualização a ser conseguida através da criatividade e experiências litúrgicas.Todas essas novidades vão expressamente contra todos os ensinamentos da Igreja. Isso provocou os diversos e múltiplos ritos hoje dominantes, do afro-católico (que se exibe com danças e tambores dentro da própria Basílica de São Pedro em Roma), ao índio-católico, às variantes nacionais e locais e aos ritos pessoais dos diferentes oficiantes de serviço. À ortodoxia e à majestade do Rito Romano Antigo cujo cânon remonta aos Apóstolos, sucedeu a Babilônia do novo rito submisso à aculturação, fruto de uma doutrina perversa.
6) O Vaticano II mostrou que aceitava o conceito leigo da liberdade como "libertas a coactione – liberdade de não ser coagido", ontologicamente fundada na dignidade do homem enquanto homem, para justificar o caráter lícito de não importa qual culto religioso (declaração conciliar Dignitatis humanæ, artigos 2, 3, 4,). O Concilio justifica assim a liberdade entendida como autodeterminação absoluta do indivíduo, de um individuo que se considera realizado e auto-suficiente, enquanto que a Igreja sempre ensinou que a liberdade não pode se separar da Verdade (revelada) e que a dignidade da pessoa fica obscurecida se nela falta a retidão da vontade que procura o Bem, porque essa dignidade está fundada sobre valores sobrenaturais e não sobre o homem enquanto homem (9). E o Concílio, por conseqüência, introduziu a idéia da livre procura da verdade por parte da consciência individual, com suas próprias forças naturais, apenas e em união com os homens de boa vontade de todas as crenças e de toda fé (Gaudium et Spes, 16), o que é menos católico do que se possa imaginar. Essa colocação conduziu, por fim, à afirmação de uma substancial independência da "comunidade política" em relação à Igreja: uma e outra teriam em comum somente o fato de estar "a serviço" de uma geral "vocação pessoal e social entre os homens", de modo a poder realizar uma "sã colaboração segundo as modalidades adaptadas às circunstancias de lugar e de tempo" (Gaudium et Spes, 76) ou ainda segundo os critérios de simples oportunidade. Mas isso se opõe ao ensinamento constante da Igreja, segundo o qual a Igreja tem um primado sobre a "comunidade política" e essa última, mesmo em sua independência relativa, deve contribuir para a salvação das almas por meio da realização e a defesa de um bem comum inspirado nos valores católicos. Deveríamos continuar e pararmos por exemplo nas análises irreais do mundo contemporâneo contidas em Gaudium et Spes, maquiadas com os piores lugares comuns, tirados das ideologias leigas correntes de então e de hoje ou na imagem adocicada e não verídica das religiões não cristãs, apresentadas no artigo 16 de Lumen Gentium e pela declaração conciliar Nostra Ætate. Mas o que dissemos até aqui nos parece suficiente.

A despeito do castigo, a esperança.
A partir dessas rápidas visões, rigorosamente fundadas sobre textos, compreende-se que aconteceu alguma coisa semelhante ao que espantava Giuseppe Prezzolini, para justificar (apesar de ser um leigo) a condenação infligida por santo Pio X em 1908 à heresia modernista [que queria, justamente, adaptar a fé ao mundo moderno, quer dizer à ciência, à filosofia, à democracia, ao progresso, à fraternidade universal, ao sentimento e à liberdade individual, às culturas nacionais, etc, retirando dela, de fato, todo elemento sobrenatural] : "Os desejos dos modernistas teriam logicamente levado à destruição do catolicismo e a sua transformação em uma religiosidade vaga e geral e, no fundo, em uma cópia ruim do socialismo".
Não obstante a condenação, a heresia modernista se manteve escondida na espera de "tempos melhores", que já começaram a aparecer nos anos vinte e trinta do século passado, com a Nova Teologia, sobretudo na Alemanha e na França. Essa Nova Teologia retomou e desenvolveu os erros do modernismo, conseguindo em seguida penetrar amplamente nos textos do Concílio, não obstante as censuras e as condenações (aliás moderadas) de Pio XII, evidentemente partilhadas por alguns setores, tanto do alto quanto do baixo clero (porém mais do alto clero). Isso pôde acontecer porque o Vaticano II quis se declarar como um simples concilio pastoral, que não pretendia pois definir nem dogmas, nem erros. (Nota lida "in aula" dia 16 de novembro de 1964), renunciando assim de modo inusitado ao carisma da infalibilidade, intrínseca ao magistério extraordinário de um autêntico concílio ecumênico. (A natureza jurídica do Vaticano II ficou então indeterminada). Essa singular "capitis deminutio – redução da autoridade" de sua parte tem por conseqüência que a crítica das novidades introduzidas por esse Concilio não contradiz o dogma da infalibilidade que o Concilio não requereu nem proclamou.
O castigo não se fez esperar. As igrejas, os conventos, os seminários se esvaziaram. Os padres e as freiras parecem uma espécie em via de extinção e aqueles que ainda há parecem, em grande número, possuídos por uma mentalidade de protesto, inclinados à rebelião e às reivindicações sociais, mais à política do que ao cuidado das almas. A unidade católica foi – de fato - dissolvida em "igrejas" nacionais e continentais, governadas por suas Conferências episcopais respectivas. O mundo católico vegeta em um clima de anarquia substancial, contra o qual a Santa Sé se mostra sempre impotente. (E não poderá começar a remediá-lo, segundo nós, enquanto não forem retirados os obstáculos que a própria Santa Sé colocou ilegitimamente contra a livre celebração da verdadeira Missa de Rito Romano antigo, da verdadeira Missa católica, declarada perpetuamente válida por são Pio V e nunca ab-rogada por quem quer que seja, e que portanto não cessou jamais de ser legitimamente celebrada, mesmo que seja por uma pequena minoria, a partir de 1969, ano da introdução do Novus Ordo).
O Catolicismo não atrai mais ninguém, seu prestígio nunca esteve tão baixo enquanto que os católicos apostasiam em número cada vez maior. As nações católicas estão tomadas pelo indiferentismo religioso o mais avançado e por uma espantosa dissolução moral e civil, cujos germes preexistiam em virtude do materialismo e do ateísmo difundidos de maneiras diferentes, mas complementares, pelos dois modelos dominantes, o americanismo e o comunismo. Em seguida, nas duas últimas décadas, uma migração assassina de povos, principalmente muçulmanos, começou a se abater sobre as nações católicas, assim como sobre todo o resto do "Ocidente".
A terra parece toda corrompida (Gen. 6,11). Nosso Senhor, Filho de Deus, consubstancial ao Pai, instituiu sua Igreja para a salvação do mundo: "Ide ...fazei de todos os povos meus discípulos..."(Mat. 28,19).Se a fé da maior parte dos pastores, infelizmente, se corrompe, quem converterá o mundo, quem o salvará? Devemos nós então desesperar com o futuro? Não, porque Nosso Senhor disse que "as portas do inferno não prevalecerão" sobre a Santa Igreja (Mat. 16,18). Esperamos, pois, se Deus quiser, que desde o princípio do século XXI, a hierarquia comece a rasgar o véu das falsas doutrinas que desde muito tempo lhe cobre o rosto, que escute finalmente o grito das almas imersas nas trevas, que volte a pregar o dogma da fé e se apresente outra vez a seu rebanho com toda a audácia da fé.
Desejamos que todos os povos comecem a sacudir, pela graça de Deus, o hedonismo, o materialismo, o vazio mental e a nulidade espiritual que os destroem atualmente, para que reencontrem a convicção de sua missão. Não é a política mas a religião que é tudo! É preciso se levar em conta que o reino da política acabou e que os povos, assim como os indivíduos, devem fazer a vontade de Deus, do verdadeiro Deus Uno e Trino. O resto não conta. Ousemos esperar que as nações católicas voltem reconhecer como suas a obrigação de "tudo instaurar em Cristo": a restauração do catolicismo como doutrina e forma de vida, para a nossa salvação e para a salvação do mundo, de modo a poder um dia reconhecer-se inteiramente num Papa que ouse, finalmente, elevar bem alto o estandarte da Fé.

Integristas?

R.P. Félix Sarda y Salvany


INTEGRISTAS! Sim, senhores, e com muita honra! E tanto é assim que, desejando hoje dirigir-vos a palavra nesta nossa querida Academia, depois de tanto tempo sem nela falar-vos, certamente não por falta de vontade, pareceu-me bem escolher para tema de minha familiar Conferência o mote ou apelido com que querem, segundo se vê já faz algum tempo, infamar-nos os nossos inimigos. Com ele quisera eu que vos mostrásseis santamente altivos e cristamente orgulhosos, como vos asseguro que estou eu, pela graça de Deus; assim estou de minha fé, de meu batismo, de minha educação católica e de meu católico sacerdócio e de tudo que constitui, graças aos céus, meu modo de ser na ordem sobrenatural e cristã. Sim, meus amigos; integrista sou e integristas desejo que sejais todos os desta Sociedade, e integrista considero todo homem de quem tenho conceito favorável em seus costumes e crenças, e integrista quisera que fosse todo o mundo - única maneira pela qual seria todo filho reconhecido e súdito submisso de Deus Nosso Senhor. Apropriemo-nos, pois, e em muito alta voz declaremos esta nossa qualificação, que quer ser depreciativa e que não é senão gloriosíssima. Repitamo-la, sim, e alcemo-la ao alto, bem ao alto, como imortal bandeira que simboliza todas as nossas aspirações, recorda todos os nossos deveres, eleva e dignifica maravilhosamente nossa condição na vida social moderna, e nos separa com distintivo característico de tudo que pertence, em maior ou menor grau, ao reinante Liberalismo. Falemos, pois, de integrismo, e com rosto varonil e peito firme aceitemo-lo com todas as suas conseqüências.

É mania constante dos inimigos do catolicismo buscar sempre disfarces e alcunhas com que atacar seus filhos, a fim de que pareça que não os ataca por serem católicos, senão por causa de algo muito separado e alheio a este seu caráter essencial. Quase todas as heresias inventaram um mote com que apostrofar os católicos, dando a entender que os combatiam não pelo ser católico, mas por outro conceito que, com aquele mote ou apelido, pretendiam expressar. No entanto, ocorreu a casualidade de o mote escolhido ser sempre uma como revelação inconsciente e involuntária de algo glorioso para os motejados. Geralmente, basta a história consigná-lo para que se decida com toda retidão o processo entre motejados e motejadores. Assim, dando-se uma vista d’olhos somente sobre os últimos séculos, creram os anglicanos afligir Flandres, apelidando de papistas os que recusaram o escandaloso cisma de Henrique VIII. E vede, senhores, se era caso de se envergonharem desta injuria aqueles esforçados ingleses que tão generosamente sabiam dar a vida por guardar inviolável fidelidade à Santa Sé. Posteriormente, jansenistas, galicanos e regalistas, que se podem incluir no denominador comum de vanguardas mais ou menos liberais do atual Liberalismo, inventaram na França o apelido de ultramontanos, para designar os fiéis d’além Pirineus e Apeninos, i. é, os espanhóis e italianos, mais adversos que qualquer outra nação às tendências inovadoras da astuta seita. E mesmo hoje não se perseguem os católicos da França por serem católicos - já se guardou bem o diabo, que é mau, mas não tonto, de cair em tal erro! – não se perseguem por serem católicos, mas clericais, como na notória frase ou grito de guerra: “O clericalismo é o inimigo”. É o que acontece, na hora presente, na Espanha – louvado seja Deus. Atacar por católica a hoste que mais deseja distinguir-se no zelo e no ardor da defesa do catolicismo, impugnar por católicas seus projetos e publicações, que apenas no ardente catolicismo desejam inspirar-se; por católicos combater sanhosa e rancorosamente homens que com outro mote não querem distinguir-se, nem outra divisa admitem em sua bandeira, senão a do puro e limpo Catolicismo, oh!, seria candidez infantil ou desusada franqueza, faltas em que nunca cairão nossos hábeis impugnadores. Não senhor, nada disso: não impugnam ou denigrem nosso catolicismo; se fosse por isso, ao menos nos respeitariam por consideração, como dizem eles, aos chamados invioláveis foros da consciência humana. Ferozmente nos denigrem e sem trégua combatem nosso integrismo. Convieram todos – não poucos anti-católicos – que o catolicismo é algo muito sério e respeitável, ou ao menos muito tolerável. Porém, no que convêm igualmente a todos, anti-católicos e católicos “moderados”, são os integristas maus e perversos. Dir-se-ia que agora é a hora de levantar na Espanha, como bandeira de defesa social, lema análogo ao que levantou em seus dias a França de Gambetta: “O Integrismo, sim, o Integrismo é o inimigo”.

Está bem, senhores; podemos considerar-nos muito honrados de que, desta feita, se nos marquem com desprezo e execração em face do público. Entretanto, isto mesmo nos dá o direito a que, recolhendo o glorioso insulto e analisando-o a sangue frio, concluamos, não convencendo a nós mesmos, pois que pela misericórdia de Deus já estamos convencidos, senão para convencer a nossos contrários que, realmente, para nós é este o primeiro brasão e título de glória.

Vejamos. Parecerá a um de nossos desditados adversários uma blasfêmia que lhes digamos que o primeiro integrista é Deus Nosso Senhor. Contudo, assim o chamamos, e isso nos ensina a filosofia e a teologia cristãs. Em Deus se encontra a inteira plenitude do ser e a suma perfeição. A integridade essencial de seus soberanos atributos não é prejudicada por deficiência alguma, nem a restringe classe alguma de limitação. Como dizemos que é Deus o ser puro e absoluto, sem nenhuma mescla de não-ser, assim podemos afirmar que é a Divina Essência o integrismo puro na mais alta, filosófica e transcendental significação. Em Deus, não há mais que infinito e eterno amor ao bem e, por outro lado, infinito e eterno ódio ao mal; ódio e amor que se identificam em só um atributo seu, a soberana e eterna justiça. E de tal sorte ama Deus o bem e odeia o mal, que não pode de maneira alguma deixar de ter este ódio e aquele amor, ou tê-los pouco firmes ou atenuados. Não, senão que sua própria Essência Divina ou força, por assim dizer, está infinitamente amando o amável e odiando o odiável, a tal ponto que deixaria de ser Deus se deixassem de existir Nele esse integrismo de amor ao bem e de ódio ao mal. Neste sentido, soa a palavra integrismo como expressão do absolutamente perfeito. Bem podemos assegurar que, quando com divino chamamento nos convida o divino Redentor a imitar, no compatível com nossa fraca natureza, a própria perfeição do Pai celestial, naquele Estote perfectus sicut et Pater vester coelestis perfectus est, convida-nos nada mais para a bondade e perfeição integristas. Se precisasse eu apoiar esta interpretação com o comentário autorizado de algum distinto Doutor da Igreja, tomaria como de suma autoridade o do insigne irmão de nosso glorioso Apóstolo da Espanha, que nos encarrega em sua Canônica ut sitis perfecti et integri um nullo deficientes, que sejamos “íntegros e perfeitos sem faltar em coisa alguma”. E poderíamos trazer à colação aquele outro texto de São Paulo a Tito, em que lhe diz: “que mostre a todos como exemplo de boas obras em doutrina, integridade e em sobriedade”. Te ipsum præbe exemplim bonorum perum in doctrina, in integritate, in gravitate. As idéias de integridade e de santidade são, não análogas, mas perfeitamente idênticas. O Dicionário da Academia define a santidade: integridade de vida. Sim, como dissemos, o integrista por essência é Nosso Senhor; são depois Dele os Santos os grandes integristas do gênero humano, e à frente deles a Rainha gloriosíssima de todos, Maria Mãe de Deus. É esta imaculada integridade a que mais de perto e com mais vivos resplendores reflete a da Trindade Beatíssima e a da Humanidade de seu Santíssimo Filho, integridade admirável, integridade incomparável, integridade sobre a qual de algum modo poderíamos dizer com o poeta:

Muestra de lo que el hombre ser podía,

Muestra de lo que fue sin el pecado.

Acaso a nossa primitiva natureza, ainda não manchada pela culpa original, não a chamam os teólogos natureza íntegra? Vejam, pois, os adversários do integrismo a que idéias ou conceitos se poderia crer que se opõem, quando aparentam fazer tanto asco - e talvez até horror – a esta palavra, com a qual os infelizes acreditam que nos rebaixam.

Mas assentemos, senhores, este assunto no mero terreno do bom senso natural, que é onde mais facilmente se confunde certa classe de inimigos. Esse abominável integrismo que sempre nos é lançado em rosto como crime ou idéia sectária, contra a qual são muito merecidos todos os anátemas, aplicado a ordem de idéias distinta das que constituem o direito público cristão (eis tão-somente o que aterroriza nossos inimigos), parece-lhes coisa bastante digna e honrosa, e até indispensável. Vejamos disso exemplos que temos vivos e palpitantes.

És comerciante, meu amigo, e crês que deve proceder em todos os negócios com a mais primorosa retidão e boa-fé. Não te permites nisso transação alguma com a consciência, nem a toleras com teus gerentes e subordinados. Levas a rigidez até o escrúpulo, e em teus livros, como em tua correspondência e trato verbal, indigna-te ante a idéia de que possas encontrar mancha que obscureça tua limpa fama de distinto cavalheiro. Dize-me agora, sabes o que és com essas estreitas idéias de escrupulosa consciência mercantil? Pois sabe-o, ainda que te assombre. És um integrista. O que professas e praticas é simplesmente o integrismo comercial. Administras cargos públicos, és por exemplo prefeito de tua cidade ou vila; desempenhas o elevado ministério de desembargador ou, simplesmente, o mais modesto de juiz de paz. E tão alta idéia tens destes ofícios (realmente muito altos na república cristã), que te esmeras e andas solícito dia e noite pelo mais exato cumprimento deles, e “no torcéis derecho ni lleváis cohecho” [não torces a lei nem recebes suborno], como diz a antiga frase castelhana, mas vês como sagrados os interesses de teus administrados – cada um deles e seus bens – e honra um depósito de que se te pedirá conta gravíssima diante de Deus. Portanto, nem te ocorre que possa ser lícita a defraudação deste por tua culpa, nem que deixe de ser-te imputável mesmo a menor negligência ou tibieza em atender a sua defesa. Assim realizas em ti o exemplo belíssimo do bom funcionário público, pai de teus subordinados, e viva imagem sobre a terra da justiça e da Providência de Deus. Chamar-te-ão, pois, de boca cheia, um bom prefeito, um probo magistrado, um reto juiz. Sabes, porém, o que serás na realidade? Serás não mais que um habilidoso integrista. Professas e praticas muito nobremente o integrismo administrativo e judicial.

Há poucas carreiras tão nobres e distintas como a militar. O cidadão que por defender sua pátria ou suas leis se faz, por profissão da disciplina, escravo dos mais austeros deveres, jura perder, antes que faltar a eles, não apenas a própria liberdade, que a ela já renunciou desde o princípio para fazer-se servo da autoridade, mas o sossego de toda sua existência, os afagos e afetos mais santos da família, a própria saúde, e até a vida. Dessa maneira vê-se impávido encarar os maiores perigos, endurecer nas mais rudes fadigas, impor-se, como ordinária e usual, a prática dos maiores sacrifícios. Vive por sua bandeira e por ela morre. Este homem, a quem todo o mundo chamará um bom soldado, outros saudá-lo-ão como um herói da história; ao fim, o que terá sido ele? Ah! Simplesmente um integrista, um fanático sectário do que poderíamos chamar o integrismo da consciência e da honra militar.

Sagradas são as leis da sociedade conjugal e doméstica. Deus e a Igreja exigem nela moral muito estreita, muita mais estreita da que costuma autorizar o mundo, que por desgraça é nisso, como em tudo, um bem suspeito moralista. Está vós conformes a tais idéias, guarda e exige que se guardem a honra e o decoro de teu lar com o inviolável respeito de um santuário. Não só zela pelo que poderíamos chamar a ordem material de tua casa e família, mas também pelo próprio prestígio moral te impõe e aos teus toda classe de recatos e privações. O bom nome de tua esposa, a limpa auréola de inocência de tuas filhas, a irrepreensível reputação de teus filhos, te são como prendas que por nada deste mundo permitirás ver comprometidas. A todos te exporás, a todos te resignarás, a fim de evitar que se manche a honra de teu sobrenome; evitar não só uma grosseira acusação, mas até a murmuração ou a mais velada reticência. Agora bem, sabes o que és com isso? Pois não passas de ser perfeito integrista, zelador intransigente do integrismo de teu lar.

Saiamos, senhores, da esfera das idéias gerais em que até agora temos posto a questão, e detenhamo-nos em termos concretos, de acordo com o ponto de vista especialíssimo em que a põem nossos impugnadores. Não são adversários, nem podem sê-lo, do integrismo essencial e absoluto, que é o ser de Deus. Nem são do integrismo participado e relativo, que constituem as virtudes e a perfeição de seus Santos. Nem tem asco do integrismo comercial, nem desprezam o integrismo da magistratura, nem chamam de absurdo o integrismo da disciplina militar, nem mesmo difamam e escarnecem o simples e usual integrismo dos honrados esposos e pais de família. Antes bem, se se encontra qualquer deles em alguma dessas últimas categorias, com grande louvor tem de ser qualificado como perfeito e nobre integrista. Nossos adversários acham tudo isso muito bom e ajustado à razão e conforme à lógica. Todos esses integrismos lhes parecem feitos de pérolas. Oh assombro! Somente reservam as iras e santa indignação e horrendos anátemas contra outro integrismo, que é precisamente o fundamental e sem o qual vivem desprotegidos, ou melhor, caem miseravelmente derrubados por falta de base todos os demais integrismos do qual tratamos até agora. Sim, senhores, o integrismo que eles aborrecem e continuamente insultam é o integrismo dos direitos sociais de Cristo-Deus, o integrismo de sua soberania divina sobre os Estados como sobre os indivíduos. Pregar esse integrismo, defendê-lo em toda crise e propagá-lo por todos os meios é o nosso pecado, disso se faz denúncia contra nós o tempo todo, e andam pedindo rigorosa sentença. Dir-se-ia que Cristo-Deus e seu Evangelho têm menos direito ao respeito na integridade de seus foros divinos que as leis do mercado ou da Bolsa, ou as do Código ou da Ordenança, ou simplesmente as da mais caseira e familiar honradez natural!

Essa exceção que fazem, contra os direitos integristas da verdade religioso-social, aqueles que, por outra parte, tão conformes se mostram em respeitar os direitos dos demais integrismos acima mencionados, acaba sendo mais injustificada e com certeza mais absurda, se se considera a idéia que há pouco só apontamos e que agora nos permitiremos desenvolver com maior amplitude. Dissemos que o integrismo dos direitos sociais de Deus e sua santa Igreja é o que poderíamos chamar integrismo fundamental. Este é base, alma e vida de todos os outros integrismos subordinados, e que sem ele não têm razão de ser. É, portanto, ridículo e ilógico sustentar qualquer integridade pública ou privada nas relações dos cidadãos entre si, se antes não se deixa bem assentada como princípio absoluto a integridade dos direitos da lei de Deus e de sua Igreja, apelidada hoje em dia pela escola liberal e transacionista com o nome de Integrismo. Sim, diga-se o que se queira e discorra-se por onde mais agrada, o eterno, o incontestável, o fundamental na sã filosofia, será sempre a verdade de que todos os direitos humanos, por respeitáveis que sejam, derivam do reconhecimento de um supremo direito divino. Se não há Deus, ou se não tenho eu o dever de reconhecer e acatar em toda a extensão a autoridade de Deus, tampouco há homem algum que possa exercer sobre mim alguma classe de autoridade ou em quem deva eu reconhecê-la. E se esta autoridade de Deus pode ser barganhada pela criatura humana, ou mutilada em obséquio a interesses humanos e passageiras conveniências, ou desatendida no que não se acomode ao critério ou inclinação particular de cada qual, não vejo certamente razão alguma para que meu livre-arbítrio não aplique igual barganha às demais autoridades de ordem inferior. Não, não vejo razão alguma pela qual tenham de ser mais intransigentes e intolerantes comigo os direitos do integrismo comercial, chamado Código Comercial, ou do integrismo judicial, chamado lei processual, ou do integrismo militar, chamado lei Militar, ou do integrismo doméstico, chamado fidelidade conjugal. Assim, pois, os anti-integristas na ordem dos direitos sociais de Deus não podem em boa lógica serem integristas no terreno dos direitos sociais do homem. Ou se renuncia os integrismos humanos e subordinados, ou se deve reconhecer como bom aqueloutro integrismo fundamental e divino. Para sair-se deste dilema não há escapatória, senão a inconseqüência. Não creio que aceitem nossos adversários como boa esta retirada, porque a inconseqüência, aceita e reconhecida como tal, não é mais que a perda do último resto de pudor na controvérsia.

Hoje, mais do que nunca, são de grande interesse estas considerações, porque hoje, mais do que nunca, tende a Revolução ao radicalismo, e portanto ao radicalismo deve tender também a reação anti-revolucionária. O egoísmo, a covardia, o amor às conveniências pessoais procuram, quanto é possível, favorecer e prolongar o reinado dos termos médios, que é o que, como em todo período de transição, prevaleceu durante os últimos cem anos. Este tipo de interinidade acabará, senhores, e bendigamos a Deus e peçamos-lhe que acabe o quanto antes. Chegamos já ao princípio do fim, e logo será preciso aceitar do Liberalismo até as mais duras conseqüências. A última palavra do Liberalismo europeu é muitíssimo chocante e de crueza sem par. Chama-se Nihilismo. Olhai bem. Não se trata mais de cercear os direitos de Deus em favor da falsa emancipação do homem; nem se trata somente de que fiquem mais ou menos compensados estes direitos absolutos da soberania divina pela soberania dos erroneamente chamados direitos do homem. Nada disso; aborda-se o problema de frente, e se diz: Nada de Deus como esperança para a outra vida e freio da presente. Nada! Esta palavra é breve, mas compendiosa, e vale por cem textos. É a tábua rasa do Liberalismo, e é a negação, epílogo e conseqüência definitiva, espantosa sim, porém lógica e racional, das suas precedentes negações. Isto é, senhores, o Nihilismo. Agora bem, a esta negação absoluta, o que se pode opor melhor que uma afirmação absoluta? Ao nada audaz da Revolução, que outra resposta decisiva pode dar-se que não seja o todo da restauração cristã. Por que não se permite dizer assim: em tudo, os direitos de Deus. Em tudo, todos os direitos de Deus. Em tudo, todos os direitos de Deus, com todas as suas aplicações e todas as suas conseqüências? Mais claramente. Se a Revolução hoje se proclama e é já o Nihilismo, qual deve ser a verdadeira contra-revolução, senão o Integrismo?

Admiro-me, em verdade, de que todo o mundo não veja desta maneira, e de que sejam tantos os insignes talentos e corações que devemos supor bem intencionados, mas cegados e seduzidos, como por desgraça vemos tão constantemente, pelos falsos atrativos do já velho, gastado e desacreditado moderantismo. Forçoso será que, sem embargo, despertem um dia de seu sono tais bem-aventurados mortais, cegos de conveniência e surdos de vontade, pois fingem não ver nem ouvir o que tão claro aparece no horizonte social, e o que marca tão fixos e seguros rumos à propaganda católica de nossos dias. Ah! Senhores, abramos de uma vez os olhos ao resplendor da incendiária teia que o inferno prepara para iluminar-nos; prestemos atenção ao não já distante, mas muito iminente rugir do furacão que ameaça envolver-nos, e que ao menos esse bem nos revele enfim a perversidade revolucionária, i. é, deixe-nos de sobreaviso, receosos e advertidos.

Por isso, mais funestos que a Revolução, e mais criminosos que os próprios revolucionários, quando tratam de agir, são os católicos que, ante a gravidade da crise social, jamais vista nos séculos passados, rechaçam como exagerados os movimentos de alarma e os procedimentos de defesa do radicalismo católico, i. é, do integrismo, o qual os infelizes qualificam como tão perturbador quanto o radicalismo da demagogia. Ah! Nossos inimigos desta vez acertaram a palavra, temos de fazer justiça ao seu feliz invento e à exata propriedade de seu dicionário. Sim, é verdade; somos perturbadores, e perturbador, inquieto e demasiadamente irritante é o nosso integrismo. Perturbador da falsa paz que desejam como suprema ventura os filhos do século, dos malfadados ócios da carne e sangue que repelem, como sempre repeliram, as asperezas do combate cristão; de consciências dormidas, de corações letárgicos, de energias amolecidas, como são perturbadores do descuidado transeunte ou do apático enfermo o grito saudável do amigo, que lhe adverte a proximidade do abismo, ou o cautério ou purgante que lhe abrasa a pele para despertar-lhe a sensibilidade e devolver-lhe a vida. Bem faz em chamar-nos desta maneira o católico moderado, porém, talvez não percebe o serviço que presta à fera revolucionária, da qual se converte no melhor aliado e auxiliar. Porque, na realidade, parece aliado do ladrão o que, vendo-o forçar a porta, não se põe a gritar: “Fogo! Fogo!”, para não perturbar com seus clamores a paz da vizinhança.

Ah, senhores, arde a casa nos quatro cantos, e não se quer que gritemos, nem sequer toquemos o aviso de alarme? A tudo invade e assola a feroz irrupção da novas hordas bérberes, e se pretende que é melhor fingir-se de cego, a fim de que com a alarma não se turbe a bem-aventurada paz dos sonâmbulos? Chame-se a isso de prudência, moderação, desejo de evitar um mal maior: na linguagem do bom senso dos povos, outro nome não se deu que não fosse traição ou covardia.

Nem traidores da santa bandeira dos íntegros direitos sociais de Deus, nem covardes em sua defesa, quereis ser vós, amigos meus e fervorosos sócios desta religiosa Academia. Em nossa nação, mais que em qualquer outra parte, lançou profundas raízes o Integrismo; na Espanha, menos que em qualquer outra nação, conhecem-se a deslealdade e a covardia. Atualmente, há apóstolos com este ideal bendito em todas as nações do globo, onde com a mesma ou parecida alcunha são motejados pela Revolução e por outros complacentes com ela. Há-os em França, Suíça, Bélgica, Alemanha, Áustria, Itália e Inglaterra; há em nossas irmãs, as repúblicas do continente americano, à frente das quais fez balançar esta bandeira o Equador, tinta em sangue de García Moreno, que morreu por ela. Mas crede: se em nenhuma destas nações ficasse sequer um soldado para a soberania íntegra de Cristo Nosso Senhor, ficariam muitos ainda nesta sua fiel Espanha, onde, com esplendor maior do que em qualquer nação, reinou nos séculos passados, e onde com a maior das venerações, sem símiles no globo, prometeu voltar a reinar. E se um dia, por nossos pecados, nesta privilegiada terra, a malfadada corrente liberal ou traidora avassalasse completamente o espírito católico integral, não duvideis, a morte do integrismo católico em Espanha seria a de nossa vigorosa nacionalidade, e o último espanhol digno deste nome seria... o último integrista.



(Conferência na Academia Católica de Sabadell, publicada na Revista “Propaganda Católica”, Tomo XI, ano 1910, ed. Librería y Tipografía Católica, Barcelona)
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Stat Veritas
Tradução: Permanência

Intolerância Doutrinal

Cardeal Pie
Sermão pregado na Catedral de Chartres (excertos); 1841.


Meus irmãos (...),
Nosso século clama: "tolerância, tolerância". Tem-se como certo que um padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza, e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser necessariamente intolerante. Mas antes de entrar no mérito, distinguindo as coisas, convenhamos sobre o sentido das palavras para bem nos entendermos. Assim não nos confundiremos.
A tolerância pode ser civil ou teológica. A primeira não nos diz respeito, e não darei senão uma pequena palavra sobre ela: se a lei tolerante quer dizer que a sociedade permite todas as religiões porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas ou porque as autoridades se consideram incompetentes para tomar partido neste assunto, tal lei é ímpia e atéia. Ela exprime não a tolerância civil como a seguir indicaremos, mas a tolerância dogmática que, por uma neutralidade criminosa, justifica nos indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao contrário, se, reconhecendo que uma só religião é boa, a lei suporta e permite que as demais possam exercer-se por amor à tranqüilidade pública, esta lei poderá ser sábia e necessária se assim o pedirem as circunstâncias, como outros observaram antes de mim (...).
Deixo porém este campo cheio de dificuldades, e volto-me para a questão propriamente religiosa e teológica, em que exponho estes dois princípios: primeiro, a religião que vem do céu é verdade, e é intolerante com relação às doutrinas errôneas; segundo, a religião que vem do céu é caridade, e é cheia de tolerância quanto às pessoas.
Roguemos a Nossa Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito de verdade e de caridade: Spiritum veritatis et pacis. Ave Maria.
Faz parte da essência de toda a verdade não tolerar o princípio que a contradiz. A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é definido, podem-se partilhar os sentimentos, podem variar as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opinião nas coisas duvidosas: in dubiis, libertas. Mas, logo que a verdade se apresenta com as características certas que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é positiva, ela é necessária, e por conseguinte ela é una e intolerante: in necessariis, unitas. Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio. A afirmação se aniquila se duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma se admite com indiferença que se ponha a seu lado a sua própria negação. Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa, é preciso defendê-la, sob pena de logo se ver despojado dela.
Assim, meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância está em toda a parte, porque em toda parte existe o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. Que há de mais intolerante do que esta proposição: 2 mais 2 fazem 4? Se vierdes dizer-me que 2 mais 2 fazem 3 ou fazem 5, eu vos respondo que 2 mais 2 fazem 4...
Nada é tão exclusivo quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São Paulo: "Unus Dominus, una fides, unum baptisma". Há, no céu, um só Senhor: unus Dominus. Esse Deus, cuja unidade é seu grande atributo, deu à terra um só símbolo, uma só doutrina, uma só fé: una fides. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só sociedade visível, uma só Igreja cujos filhos são, todos, marcados com o mesmo selo e regenerados pela mesma graça: unum baptisma. Assim, a unidade divina que esplende por todos os séculos na glória de Deus produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade hierárquica do sacerdócio: um Deus, uma fé, uma Igreja: unus Dominus, una fides, unum baptisma.
Um pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância de Jesus Cristo, e certo filósofo de Genebra disse, falando do Salvador dos homens: "Não vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma". Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no Espírito Santo, se alguém se recusa a comer a minha carne e a beber o meu sangue, não terá parte em meu reino. Confesso que nisso não há sutilezas; há intolerância, há exclusão, a mais positiva, a mais franca. E mais: Jesus Cristo enviou seus Apóstolos para pregar a todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma católico. E, prevendo os movimentos e as divisões que esta doutrina iria incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que tinha vindo para trazer não a paz, mas a espada, e para acender a guerra não somente entre os povos, mas no seio de uma mesma família e separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo incrédulo, o genro cristão do sogro idólatra. A afirmação é verdadeira e o filósofo tem razão: Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma (...).
Falam da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos Apóstolos. Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra de intolerância religiosa. No momento da pregação dos apóstolos, quase todo o universo praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os outros, eram todos demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam uns aos outros: Satã não está dividido contra si mesmo. O Império Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava seus deuses, e o estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção que o da sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio fazia marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que arrastava atrás de si os reis vencidos. O mais das vezes, em virtude de um Senatus-Consulto, os ídolos dos bárbaros se confundiam desde então com o domínio da pátria, e o Olimpo nacional crescia como o Império.
Quando aparece o Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são dados históricos de valor com relação ao assunto presente), quando o Cristianismo surge pela primeira vez, não foi repelido imediatamente. O paganismo perguntou-se se, em vez de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu solo. A Judéia tinha-se tornado uma província romana. Roma, acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judéia. Um imperador colocou Jesus Cristo, como a Abraão, entre as divindades de seu oratório, assim como se viu mais tarde outro César propor prestar-lhe homenagens solenes. Mas a palavra do profeta não tardou a se verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem ciúmes, deuses novos e estrangeiros ser colocados ao lado deles, com a chegada do deus dos cristãos, lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranqüila poeira, abalam-se sobre seus altares ameaçados: ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie ejus. Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando se viu que os cristãos, cujo culto se havia admitido, não queriam admitir o culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o espírito intolerante da fé cristã, foi então que começou a perseguição.
Ouvi como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos. Eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os censuram somente por não poderem suportar outra religião senão a deles. "Eu não tinha dúvidas", diz Plínio, o Jovem, "apesar de seu dogma, de que não era preciso punir sua teimosia e sua obstinação inflexível": pervicaciam et inflexibilem obstinationem. "Não são criminosos", diz Tácito, "mas são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há neles uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena as crenças de todos os povos": apud ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium. Os pagãos diziam geralmente dos cristãos o que Celso disse dos judeus, com os quais foram muito tempo confundidos, porque a doutrina cristã tinha nascido na Judéia. "Que esses homens adiram inviolavelmente às suas leis", dizia este sofista, "nisto não os censuro; só censuro aqueles que abandonam a religião de seus pais para abraçar uma diferente! Mas, se os judeus ou os cristãos querem só dar ares de uma sabedoria mais sublime que aquela do resto do mundo, eu diria que não se deve crer que eles sejam mais agradáveis a Deus que os outros".
Assim, meus irmãos, o principal agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta do seu símbolo, e, como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se tratasse de um Deus mais, não teria havido reclamações; mas era um Deus incompatível, que expulsava todos os outros: aí está o porquê da perseguição. Assim, o estabelecimento da Igreja foi obra de intolerância dogmática. Toda a história da Igreja não é senão a história dessa intolerância. Que são os mártires? Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios a professar o erro. Que são os símbolos? São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer e que impõem à razão os mistérios necessários. Que é o Papado? Uma instituição de intolerância doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade de fé. Por que os concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas interpretações do dogma, anatematizar as proposições contrárias à fé.
Nós somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina; disto fazemos profissão; orgulhamo-nos da nossa intolerância. Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a verdade é uma, e conseqüentemente intolerante. Filha do céu, a religião cristã, descendo à terra, apresentou os títulos de sua origem; ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam irrefutavelmente sua divindade. Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu autor, pode dizer: Eu sou a verdade: Ego sum veritas, é necessário, por uma conseqüência inevitável, que a Igreja Cristã conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu do céu; é necessário que repila, que exclua tudo o que é contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina, é dirigir-lhe uma recriminação muito honrosa. É recriminar à sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e exclusiva.
Nós ficamos muitas vezes confusos com o que ouvimos dizer sobre todas estas questões até por pessoas sensatas. Falta-lhes a lógica, desde que se trate de religião. É a paixão, é o preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que querem quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o dogma, preparam para si uma moral fácil. Diz-se com justeza perfeita: é antes o decálogo que o símbolo o que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser postas num mesmo nível, é que se equivalem todas; se todas são verdadeiras, é porque todas são falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus. E, se se pode aí chegar, já não sobra nenhuma moral incômoda. Quantas consciências estariam tranqüilas no dia em que a Igreja Católica desse o beijo fraternal a todas as seitas suas rivais!
Jean-Jacques [Rousseau] foi entre nós o apologista e o propagador desse sistema de tolerância religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que ele tenha ido mais longe que o paganismo, que nunca chegou a levar a indiferença a tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto principal desse catecismo, tornado infelizmente popular: todas as religiões são boas. Isto é, de outra forma, todas as religiões são ruins (...).
A filosofia do século XIX se espalha por mil canais por toda a superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética, sincrética, e, com uma pequena modificação, é também chamada progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que todas as opiniões e todas as religiões podem conciliar-se; que o erro não é possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que todo o erro dos homens consiste em julgar-se possuidores exclusivos de toda a verdade, quando cada um deles só tem dela um elo e quando, da reunião de todos esses elos, se deve formar a corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria, não há religiões falsas, mas são todas incompletas umas sem as outras. A verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo, a qual ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto é, a religião natural que reconhece um Deus; o ateísmo, que não conhece nenhum; o panteísmo, que o reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo, que crê na alma, e o materialismo, que só crê na carne, no sangue e nos humores; as sociedades evangélicas, que admitem uma revelação, e o deísmo racionalista, que a rejeita; o Cristianismo, que crê no Messias que veio, e o judaísmo, que o espera ainda; o Catolicismo, que obedece ao Papa, o protestantismo, que olha o Papa como o Anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade. Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que abrigará todas as outras no seu seio.
Esta doutrina que qualificais de absurda não é de minha invenção; ela enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu fundo jamais varie, toma todos os dias novas formas sob a caneta e sobre os lábios dos homens em cujas mãos repousam os destinos da França. — A que ponto de loucura chegamos então? — Chegamos ao ponto a que deve logicamente chegar todo aquele que não admite o princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que a verdade é uma, e por conseqüência intolerante, apartada de toda a doutrina que não é a sua. E, para resumir em poucas palavras toda a substância deste meu discurso, eu vos direi: Procurais a verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os erros podem fazer-se concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que têm um pai comum: vos ex patre diabolo estis. A verdade, filha do céu, é a única que não capitula.
Vós, pois, que quereis julgar esta grande causa, tomai para isto a sabedoria de Salomão. Entre essas diferentes sociedades para as quais a verdade é objeto de litígio, como era aquela criança entre as duas mães, quereis saber a quem adjudicá-la. Pedi que vos dêem uma espada, fingi cortar, e examinai as caras que farão os pretendentes. Haverá vários que se resignarão, que se contentarão da parte que vão ter. Dizei logo: Essas não são as mães! Há uma cara, ao contrário, que se recusará a toda composição, que dirá: a verdade me pertence, e devo conservá-la inteira, jamais tolerarei que seja diminuída, partida. Dizei: Esta aqui é a verdadeira mãe!
Sim, Santa Igreja Católica, Vós tendes a verdade, porque tendes a unidade, e porque sois intolerante; não deixais decompor esta unidade.


Fernando Rodrigues Batista

Quem sou eu

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Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot