quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Canalhas sem batina: O progressismo católico e os padres canalhas...

Fernando Rodrigues Batista


De uma feita tive desgostosa conversa com um desses padres revolucionários, um padre pra frente, desses que não usam batina. Não usava batina e ostentava uma enorme barriga. Sim, era bem gordo e suava muito. Entre um gole e outro de café disparei: "comunismo é pecado. É ateu. Contra a doutrina da Igreja...".
O padre gordo e sem batina avermelhou-se – não é mera coincidência – como se eu proferisse uma grande blasfêmia, levantou-se da mesa e soltou aos gritos: "O comunismo não é tão ruim. Você anda lendo livros errados". Não voltei a lhe falar. Segui assistindo suas missas chatas com suas homilias horríveis. Confesso que tinha a sensação de estar em uma reunião sindical.
Devo salientar para espanto de alguns, que o padre gordo, sem batina, que tinha uma homilia horrível, aceitava de bom grado as insinuações das velhas rezadeiras que na falta do que fazer se reuniam na Igreja todos os dias para sei lá o que. Não obstante ele seja também um grande canalha, não é sobre este tal padre que eu queria falar. Mas quero falar de um assunto que segue a mesma tônica, ou seja, quero falar dos padres canalhas. A ordem do dia era a questão social. Pecado, inferno, nem pensar, certamente – na mente do padre pra frente – trata-se de coisas ultrapassadas, irrelevantes, não condizentes com a "lógica" do Concílio, como dizia o progressista Cardel Suenens de quem doravante falaremos.
Ah, se Gustavo Corção estivesse vivo!
Me acode à memória um jovem amigo, revoltado, era bem jovem, 20 anos. Explico-me. Este amigo faria uma viagem e queria a qualquer custo se confessar. Talvez um leitor desavisado poderia perguntar: - Existe isso ainda? -. Bom, seguindo: meu jovem amigo seguiu até a Paróquia local. Tomou um susto. O padre, este também sem batina, porém menos gordo – na minha opinião daria um ótimo narrador de futebol - bravejou: "Só com hora marcada". A alma agora depende de hora marcada: chegamos ao ápice da defecção da fé e da Igreja.
Como imprescindivelmente haveria de viajar naquele mesmo dia, tomou um ônibus em direção à Catedral. Na frente, uma placa enorme estampava: "Atendimento das 14:00 ás 18:00 hs". Entra, ouve barulhos de máquina de escrever. Bate na porta. Nada. Talvez tivesse imaginado: "o que devem estar redigindo? Um Manifesto? Uma homenagem à Marx? À Guevara?". Tudo é possível. Sai desconsolado no sol de rachar catedrais. Novamente e propositalmente uso uma expressão do Nelson Rodrigues. Não importa. O fato é que não o atenderam.
Ah! Em outra oportunidade - me relatou o jovem amigo – em sua peregrinação quase quixotesca, entrou sem bater e não se surpreendeu ao encontrar o padre, também sem batina - esse usava cadeira de rodas - deleitando-se com a leitura de um grande canalha, uma cafajeste, um pulha. Refiro-me ao Boff claro. O Leonardo Boff, idolatrado, chupado sem titubeios, por cem entre cem desses padres da Igreja Nova. Voltando. Meu amigo resolve ligar para duas ou três paróquias, salvo engano é isso. Nada. Simplesmente nada. Ninguém disponível.
Faltam padres disse uma secretária. Fico imaginado Bernanos em uma situação dessas. Queria apreciar ele se manifestar à respeito. Fui assaltado de uma cólera terrível. Esse assunto ficou em minha cabeça. Entre uma leitura e outra ficava comigo: "E se ele morresse?". "É, eles deveriam ir para o inferno". Sentia inevitável vontade de esfregar em suas caras a Pascendi Dominici Gregis. Não sei se eles a conhecem, mas senti vontade de esfregar na cara deles.
E o leitor atordoado conhece? Imaginem, outra situação.
Um desses demônios encarnados como com acuidade salientava Santa Catarina de Sena, foi solicitado por uma filha aflita que tinha a mãe muito enferma que esperava um ato caridade do padre, esperava que este lhe concedesse o sacramento da unção dos enfermos. O canalha simplesmente disse: "Hoje não posso. É meu dia de folga". Canalha, pulha, demônio encarnado. Existem ainda padres ou só canalhas? O Nelson Rodrigues dizia que achava lindo quando ainda menino as crianças atravessavam a rua para beijar a mão do padre, do padre de batina, do padre que juntava as mãos e rezava.
Hoje não se beija a mão do padre, e o padre – falo aqui dos padres pra frente, padre de passeata - não usa batina e tampouco reza.
Peço vênia para relembrar o que disse Santo Pio X, de venerável memória: "Os fabricantes dos erros, ocultam-se no seio e no próprio grêmio da Igreja... se apresentam como restauradores da igreja e em falange perigosa atacam com audácia o que há de mais sagrado na obra de Jesus Cristo". Perfeito. Pio X condenou o modernismo no Decreto Lamentabili Sane Exitu, e na citada encíclica Pascendi Dominici Gregis. Ninguém conhece esses documentos. Estão jogados ao relento assim com as almas de todos católicos sinceros.
Entrementes, toda inovação é aceita de bom grado pelos fiéis desatentos, que lhes são impingidas a gosto e contra-gosto pelos progressistas. As mais soezes mentiras, àquelas que fazem rinchar as constelações, consoante a expressão do insaciável Leon Bloy - este sim católico de verdade – tem a potência de derrubar dogmas. Para melhor ilustrar, recorda o saudoso pensador belga Marcel de Corte uma triste situação onde um padre ainda moço, que em sua homilia teve a audácia de pronunciar: "Maria sacrificou sua virgindade para dar a luz ao Salvador do Mundo".
Como não se indignar com estes patifes anunciadores do nada? E as coisas do espírito? E a tradição? Estudar Che Guevara, Marx é mais importante? A Fome. A barriga cheia. Tudo alcançou maior valor que as pobres almas com cede de eternidade. Se a barriga está cheia está tudo bem, assim dizem os canalhas. Falei muito em canalhas, vou falar agora aproveitando a vênia, de quem brilhantemente usava essa expressão. Falarei de Nelson Rodrigues.
Porque o espanto leitor conservador? Do Nelson Rodrigues que era fluminense como o literato Octávio de Faria. Em um artigo o Nelson lembra de uma certa vez em que o Carlos Heitor Cony o arrastou para um canto e soltou: "Teu artigo de hoje está de um reacionarismo". Explico. O grande dramaturgo havia escrito sobre a fome de 1917, 18 e 19, ressaltando que a fome dos anos citados não tinha o apelo, o patético, a promoção que tinha em seu tempo e que segue até os nossos.
Seguindo, arremata Nelson: "hoje, há uma fúria. Quantos vivem da Fome? Por exemplo: d. Hélder. Sempre teve o gênio promocional... o d. Hélder anterior não tem o dramatismo, a potência, a forma do d. Hélder da fome. A fome tem-no feito".
Recordei do Nelson Rodrigues que falou da fome e que falou do d. Hélder, que por seu turno era progressista, assim como o Cardeal Suennens de quem falei em algum parágrafo mais atrás, o primeiro ganhou a alcunha de Bispo Vermelho, o segundo ficou famoso por ter repreendido o Papa Paulo VI por ocasião da encíclica "Humanae Vitae", pois entendia Suenens tratar-se de uma encíclica retrograda e queria o Cardeal que a Igreja andasse depressa. Esta é a característica essencial do progressismo católico: a Igreja tem que ir pra frente. Pergunto-me: para onde?
Os dois lançaram livro juntos. Não o li. Mas o Bispo Vermelho tornou-se corifeu da Teologia da Libertação e o outro um dos precursores do propalado movimento carismático, lançando em 1974 o livro "Une Nouvelle Penetecôte". Esse pulha segundo alguns era grau 33 da maçonaria. Eu não dúvido. O Pe. Luc J. Lefévre bem dizia: "as contestações vem se multiplicando de há tempos", e seguem se multiplicando.
Quando assistia uma dessas missas que parecem reunião de sindicato marxista ou as chamadas missas show, não outro era meu sentimento senão de saudades de um tempo que não vivi...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Terra dos Homens

Saint-Exupéry (1900-1944) pertence, no dizer de Michel de Saint-Pierre, à linhagem dos Maurras, Barrès, Bernanos, Montherlant, Drieu La Rochelle, Brasilach, Jacques Ploncard d´Assac, homens que souberam levantar a voz em defesa da condição humana, ameaçada pela tecnocracia totalitária, e o fizeram anunciando galhardamente verdades das mais necessárias para o homem do nosso tempo. Note-se porém que a defesa da condição humana levantada por homens da estirpe dos supraditos em tudo destoa do "humanismo" entoado pela ONU e pelos marxismos de todos os matizes que não passam de um arremedo de humanismo, mas assentada nas Verdades eternas marcadas no coração do todos os homens.


E agora aqui, na última página deste livro, eu me lembro daqueles burocratas envelhecidos que nos serviram de cortejo na madrugada de nosso primeiro vôo, quando nos preparávamos para virar homens, tendo tido a sorte de ser designados. Eles eram semelhantes a nós, mas não sabiam que tinham fome.
E há muitos homens assim, dormindo, sem que ninguém os desperte.
Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.
Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé sob a lâmpada do carro, contemplei, naquele vagão sem divisões, que parecia um dormitório, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se reviravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.
E assim eles me pareciam Ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.
Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nas bancas dos mercados. E eu pensei: o problema não reside nesse miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por faceirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ele, que hoje é uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esse montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entornar homens? Um animal ao envelhecer conserva sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?
E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para o outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento de seixos rolados pelo mar.
Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entornar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover com a ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.
O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.


Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o Homem.



SAINT EXUPÉRY, Antoine de. Terra dos Homens, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 138-140.

A plenitude sonhada

Gustave Thibon (1903-2001), que em minha modesta opinião foi o escritor mais completo do século passado traz nas linhas a seguir passagens luminosas que constam de seu livro "Nuestra mirada ciega ante la luz" (Rialp, 1973), versão espanhola, e cuja versão original foi publicada em Paris, em 1955. Thibon, como já salientado aqui foi um camponês francês, magnífico conhecedor de Aristóteles cuja obra aprendeu em grego, pensador e escritor autodidata, que em 1964 recebeu o Grande Prêmio Literário da Academia Francesa. Com a sutileza e clareza que lhe era peculiar nos parágrafos abaixo o autor interpreta em chave divina o desejo de felicidade que inunda o coração de toda pessoa: «Na realidade, todo mundo busca a Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar»




«Como falarei aos homens?», se perguntava Saint Exupéry pouco antes de que sua voz se apagara no silencio eterno. É o tormento de todo homem que intenta escrever, não pelo puro afã de reunir palavras, nem pelo desejo de difundir idéias, senão para que seus irmãos participem de uma verdade e um amor que vivem em sua alma com mais força que ele mesmo. Onde encontrar as palavras que designem, que alcancem a fonte do ser? Onde encontrar os términos que transcendam além de si mesmos? E, antes de tudo, que é o homem? Um ser que pensa, que ama, que vai morrer e que está certo que vai. Pouco importa que se esforce em esquecer-se, que tente vendar os olhos inutilmente com as aparências: os olhos da alma não se cegam como os do corpo, e o homem o sabe. É sua única certeza, a única promessa que não há de falhar, o grande paradoxo da vida, cuja suprema verdade se encontra na morte.
Faça o que faça e deseje o que deseje, tanto se se aferra ao passado como se corra para o futuro, tanto se se busca como se fuja de si mesmo, tanto se se endurece como se se abandona, na sensatez como na loucura, o homem não tem mais que um desejo e uma meta: escapar das redes do tempo e da
morte, traspassar seus limites, chegar a ser mais que homem. Sua verdadeira morada é mais além, sua pátria está fora de suas fronteiras. Mas sua desgraça estriba - e aí está o ponto dessa perversão que chamamos erro, pecado ou idolatria- em que, enganado pelas aparências e buscando o eterno ao nível do efêmero, se distancia ainda mais da unidade perdida, da plenitude vislumbrada entre sonhos.
Haveria que fazer ver aos homens a maravilha da realidade divina que seu sonho presente oculta. Fazer-lhes compreender que a fome de Deus se esconde nas coisas em aparência mais distantes do divino: suas ocupações cotidianas, suas paixões terrenas, até mesmo seu materialismo, porque a matéria só tem valor como sinal do espírito. Na realidade, gira o mundo em busca de Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar. Todo mundo busca a Deus, posto que todo mundo busca o impossível. Se o supremo valor do homem consiste na superação do humano e na aspiração expressa ou tácita para o ser inefável que um Padre da Igreja grega chama «o mais além de tudo», nosso século não me parece indigno do beijo da eternidade. Talvez nunca como agora o homem sentiu-se amargamente encerrado em seus próprios limites. Assim como logrou a desintegração do átomo, há feito também estralar dentro de si todas as dimensões do humano. De tal modo se há esvaziado de seu equilíbrio natural e de suas seguranças terrestres que somente pode dete-lo contra o fundo do nada o contrapeso do absoluto.
Minha única ambição é convidar aos que me lêem a fazer coincidir seu olhar com está gota de luz eterna que é o vestígio e o gérmen de Deus em todo homem. Porque a morte - o único fato indiscutível do futuro- nos espera segundo a altura de nossos desejos, como uma noiva ou como um verdugo, e de todos os atos de nossa alma só subsistirá nossa participação naquilo que, por não proceder do tempo, não morrerá com ela. Cronos unicamente devora a seus filhos.
Por um momento me comprazia em ver ao homem tão despojado de si mesmo que não restava outro remédio senão acudir a Deus. No entanto, há outros momentos em que pergunto se ainda lhe resta substância humana suficiente para que possa prender nela o enxerto divino. O violentar de modo habitual os ciclos da vida, o desaparecimento progressivo das diferenças e das hierarquias, o indivíduo transformado em grão de areia e a sociedade em deserto; a sabedoria substituída pela erudição, o pensamento pela ideologia, a informação pela propaganda, a glória por publicidade, os costumes pelas modas, os princípios morais pelas formulas mortas, os pais por tutores; o esquecimento do passado tornando estéril o futuro; o desaparecimento do pudor e do sentido do sagrado; a máquina rebelando-se contra seu autor e recriando-o a sua imagem; todos estes fenômenos de erosão espiritual, aliados ao orgulho exacerbado de nossas conquistas materiais não correm o risco de conduzir-nos para esse grau limite de esgotamento vital e auto suficiência além da qual a piedade de Deus assuste, impotente, a decadência de tudo que é humano?
Como mostrar aos homens esta dimensão divina que, ao entregar-lhes o infinito, lhes curaria de sua aberração? Ao homem moderno, antes de lhe falar de Deus deve-se ajudar-lhe a dar-se conta do vazio e falsidade que encerram todos os ídolos pelos quais inutilmente tenta substituir a Deus. Há que fazer-lhe descobrir, como quer Santa Teresa, que seu desejo não tem remédio, que é insaciável e mais real que todos os objetos com os quais até agora tem tentado em vão satisfazer-se. Assim compreendido, o mesmo desejo o irá levando até Deus. O diagnóstico indica o remédio: analisando as causas profundas da sede que diretamente se chega a fonte.
Todos fomos criados para o divino, mas também para o sensível. Sonhamos ao mesmo tempo na plenitude espiritual e no amor humano e por isso e por isso facilmente somos enganados. Quando a beleza sensível se nos oferece, já não nos basta aceita-la como tal, quer dizer, como uma coisa efêmera e limitada, e lhe pedimos que sacie nossa sede de mistério e de absoluto. Esperamos dela um Deus a quem possamos trazer em nossos braços, a prova do espírito pelos sentidos e do eterno pelo tempo... Até que chega a hora inevitável e nos damos conta de que o que trazemos em nossos braços não é Deus, senão o nosso desejo desorientado mas incurável d´Ele.
Ditosos então se descobrirmos que esse ser impotente para saciar nossa sede sofre também nossa mesma sede, e deste modo lograrmos associar nossas duas misérias em uma única prece. Essa é a única possibilidade de supervivencia do amor humano. Não se trata de encontrar a Deus um no outro, senão de busca-lo juntos. A pobreza reconhecida e aceita nos leva para verdadeira riqueza, ainda que a emissão de falsa moeda só pode nos conduzir a ruína.
«Amor é a redução do universo a um só ser e o aprofundamento nesse único ser até chegar a Deus» (Víctor Hugo). A fórmula é extraordinária por sua precisão e densidade.
Reduzir em superfície (o universo se desvanece em aras de um só ser) e aumentar em profundidade (descobrimos a Deus através de um só ser penetrado a fundo). Em seu primeiro estágio, o amor é um pecado de idolatria (tu só); em segundo, já é a virtude da religião (Deus em ti). Toda alma se concentra em um só ponto desse imenso véu de aparências que chamamos universo, mas, nesse preciso ponto, o véu se desgarra e nos deixa ver a realidade divina.
Esta vida que amo com toda a ternura de um filho, com toda a paixão de um amante, me enche de dons que desbordam meus desejos, e ei de morrer com os olhos e o coração cheios de suas doces recordações. Mas, que é a recordação de uma imagem, mais que o reflexo e a promessa de um modelo?
Posso fazer algo melhor que desejar o modelo através de suas cópias? O mais puro que a terra tem me dado é o que me vinha de mais além da terra, e mais que um esboço de porvenir era uma chamada para a perfeição eterna.
O que me atraí para além da vida é esses fulgores de eternidade que a atravessam. Tenho sede da luz eterna da qual procedem esses fulgores efêmeros.
Na certeza da derrota, uma só esperança me resta: o Deus que me criou a sua imagem e semelhança me perdoará uma vez que em suas criaturas finitas nunca haja amado mais que a sua imagem infinita. Porque Te juro que jamais ei amado, que jamais ei buscado a ninguém mais que a Ti, que és a inocência infinita, a boca que não sabe dizer que não. As vezes posso ter modificado e confundido as distâncias e os planos, e ter afundado no barro ou me perdido nas nuvens, mas nesse barro só busquei o rasto de Teus passos e nessas nuvens a estrela de Tua luz. Se minha loucura traspassou os limites de Tuas leis é porque traduzia a impaciência de meu amor, e si desconheci os bens velados da terra foi por perseguir a inacessível pureza de Teus bens. É verdade que tive também meus ídolos, que me foram doces e próximos como o anoitecer e o leito do trabalhador fatigado: mas Tu estavas neles e atras deles, e minha adoração os há atravessado sempre para chegar a Alcançar-te. Castiga-me se queres, não tenho medo de Ti. Abre o deserto sobre meus passos e afasta de meus lábios todas as fontes: sempre minha sede de Ti me unirá a Ti.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Para onde vai o Islã?

Marcel de Corte


Para onde vai o Islã? Não parece errado afirmar que o Islã mesmo o ignora quase por completo. Esse grande corpo informe está despertando de uma longa letargia, as pálpebras fechadas, a mente entorpecida, os membros estirados e sacudidos aqui e acolá por sobressaltos involuntários. A história do Islã manifesta duma ponta à outra a estranha alternância entre torpor e exaltação.
A causa disso parece ser o atavismo nômade desse imenso agregado de povos: o Islã só se mexe e se agita quando encontra um condutor, um animador, um füher, um êmulo de Maomé. Sem a guarda do pastor com seus cães, o rebanho cai na anarquia e, pouco a pouco, na sonolência. O Islã é semelhante à limalha de ferro cuja força coesiva depende da ação do ímã.
Em outras palavras, o islã apresenta para o historiador e o sociólogo a imagem de uma força magnética sempre prestes a cair em inércia, se lhe faltar o dinamismo duma oligarquia dirigente ou a oposição duma resistência à sua passagem e expansão. As relações entre o Ocidente e o Islã, desde o séc. VII até hoje, são marcadas por fases de explosões irracionais e de estagnações também incompreensíveis. Como já dissemos várias vezes, o comportamento do discípulo de Maomé, salvo exceções, não conhece aquela medida entre o excesso e a carência, de que a inteligência grega, enraizada na ordem natural, impregnara o Ocidente há já muito tempo. O Islã é instável e descomedido. É notável que a civilização islâmica, em Bagdá ou Espanha, tenha conhecido momentos de grande esplendor, quando o dom que a Grécia legou ao mundo chegou até ela. Poucas culturas alcançaram ao mesmo tempo aquela efervescência vital e sutileza espiritual.
Essa união durou pouco: o Islã precipitou-se num movimento pendular, que podemos observar com maior clareza nas pessoas de seus adeptos, sob a forma de brutalidade explosiva revezada com uma inesperada e requintada delicadeza, ou vice-versa. É como se o Islã sempre tivesse de balançar entre as qualidades e os defeitos da barbárie, e as qualidades e defeitos da decadência.
Talvez encontremos a origem dessa instabilidade dentro da estrutura tipicamente religiosa da mentalidade islâmica e na antítese violenta estabelecida entre Deus e os homens.
Eu seria, sem Deus, mais vil qu’um bicho impuro, diz o Maomé de Victor Hugo. O Islã ignora o Cristo Deus encarnado, renovador da natureza humana assumida em sua pessoa. Maomé tem Cristo apenas por profeta. Ignora a noção de natureza renovada pelo Novo Adão. Não existe nada entre Deus e o homem. Victor Hugo exprimiu magistralmente, com outras palavras, a dualidade da alma religiosa islâmica, dividida entre o Céu e a Terra:
Filho, eu sou vil campo dos sublimes combates
Eu sou homem excelso, e homem de disparates,
O mal, dentro nos lábios, com o bem alterna,
Como é no deserto a areia e cisterna!
O islamismo não possui centro de gravidade. Não tem neste baixo mundo um ponto fixo. Não dispõe de critérios imutáveis, por faltar-lhe este Meio-Termo que é o Cristo entre o homem e Deus, e uma Igreja concebida como corpo místico, tal como Jesus Cristo a espalhou e comunicou. Oscila assim entre o fanatismo estrito, coagulando-se sob uma forma qualquer, e a pulverização entre crenças disparatadas, indo da mística até à superstição grosseira. A fé em Alá, dominante e exclusiva, mistura-se à uma multidão indefinida de seitas, enumeradas na Enciclopédia Britânica em três colunas de texto bem espremido.
As conseqüências políticas dessa atitude religiosa sempre vacilante e desequilibrada são imensas.
Já é lugar comum dizer que no Islã a política é apenas um prolongamento da religião. O temporal e o espiritual não são dois domínios distintos. O primeiro não se subordina ao segundo, mas se confundem. Apesar do atual processo de laicização das elites islâmicas – que vão se tornando incrédulas ou ritualistas e farisaicas - elas consideram o Islã como o mundo em si, sem fronteiras ou determinações originadas da situação terrestre do homem e da conseqüente diversidade dos agrupamentos humanos. O Islã desconhece a natureza humana e suas implicações, logo desconhece também a idéia de pátria e, no interior desta, a idéia de diferenciação hierárquica entre homens de funções desiguais. Não existe “casta” ou “ordem”, no sentido Ancien Régime: no Islã, há igualdade absoluta entre os fiéis. O mulçumano sente-se em casa onde quer que haja Islã: seu passaporte é sua fé, viva ou aparente. O marroquino ou o tunisiano não é um estrangeiro no Egito.
Assim, o Islã apresenta-se como uma sociedade sem classes, internacional ou, mais exatamente, “anacional”, onde os membros congregam-se imbuídos da mesma concepção das relações entre Deus e o homem, à maneira da sociedade sonhada por Marx, cuja instauração fora intentada pelos seguidores deste na Rússia. Bastaria o arrefecimento religioso das elites dominantes – um processo em curso desde o séc. XIX – para o Islã, assestando o olhar para a possessão da terra e as relações entre o homem e o mundo material, encontrar-se na mesma posição em que a Rússia. Não por acaso, um dos observadores mais sagazes do comunismo, o Sr. Jules Monnerot, apodou-o de “o novo Islã”. Nesse sentido, são bem acertadas as analogias entre as duas concepções de mundo.
Ademais, o Islã já exibiu no passado, donde tira sua exaltação presente, um espírito totalitário idêntico ao do marxismo. Tanto para ele como para o marxismo, a humanidade se divide em duas partes em tudo heterogêneas: os fiéis e os infiéis, os muçulmanos e os ocidentais. A filosofia materialista do marxismo é sem dúvida ainda inconcebível no Islã. Os comunistas muçulmanos são escassos. Mas essa pretensa impermeabilidade do espírito islâmico ao marxismo não vale mais que a imaginária discordância descoberta entre o espírito inglês ou escandinavo e a doutrina de Marx. Vemos na história recente a Grã-Bretanha e os países nórdicos, apesar de conservarem o verniz ideológico e elegerem uns poucos deputados comunistas, absorverem altas doses de marxismo edulcorado.
A realização da aliança entre a Rússia e o Islã, sob as nossas vistas, não vai contra a natureza. Ela origina-se de mentalidades que se correspondem e que podem vir a se identificar na confusão atual da história. Os americanos nunca interromperão essa afinidade, por meio do seu anticolonialismo pueril, se desconhecem o espírito muçulmano. Será fácil para a Rússia superá-los, ao apelar para a semelhança existente entre a atitude anti-européia do muçulmano e a atitude anticapitalista; será fácil, no momento oportuno, atiçar a primeira atitude, que já existe e se exaspera, no sentido da segunda, que ainda está informe, e daí englobar os Estados Unidos numa condenação contra todo Ocidente. Bem faria a diplomacia americana, sempre mais sensível aos elementos econômicos do problema que aos fatores psicológicos, se percebesse a astuciosa mudança de rumos.
A política estrangeira soviética não mudou desde os famosos episódios – já esquecidos das democracias, desmemoriadas! – entre Zinoviev e Enver Pasha, no Congresso de Bakou, a 1º de setembro de 1920. Ela oferece-nos os frutos dum esforço inabalável, bem diferente da diplomacia dos povos ditos livres, a quem os fatos obrigam a lastimáveis piruetas. As duas “guerras santas”, a da Rússia contra o capitalismo e a do Islã contra o Ocidente, vão acabar por se tornar uma só, se a América não abrir os olhos.
Esse quadro é bastante provável, porquanto a moral islâmica abre um campo mais vasto às paixões do espírito e ao ressentimento que a moral cristã. Eis a razão por que o Islã se vai insinuando nas populações primitivas da África: estas adotam a ética islâmica, por menos exigente. Não há quem negue, por outro lado, o florescimento do marxismo por onde se relaxe a moral. Ainda é verdadeiro aquilo de Rivarol: “se aos homens desobrigamos, os estragamos”.
Os futuros historiadores possivelmente considerarão a dissolução do Império Otomano, ratificada pelos tratados de 1918, e a estúpida destruição do Império Austro-Húngaro duas pesadas hipotecas a serem cobradas ao séc. XX. A antiga Turquia, saciada de conquistas – por sinal, bem modestas -, continha o avanço do Islã, do mesmo modo que a Áustria-Hungria esfriava a efervescência balcânica.
Além disso, esses dois sistemas constituíam um tampão contra o imperialismo russo. Hoje estamos pagando o preço dessa política cega, em que saíram ganhando o “idealismo” laico e as sórdidas preocupações econômicas. Tomara não nos seja o preço muito alto, já que, citando novamente Rivarol, a pior desgraça é a de merecer suas desgraças!
Em todo caso, é certo dizer, os nacionalismos árabes não possuem raízes nas tradições islâmicas, e evoluirão fatalmente em direção ao internacionalismo e ao pan-islamismo. A Rússia, sempre atenta, lhe dedicará mais e mais cuidados na proporção direta dos erros habituais da diplomacia dita atlântica. O único trunfo nas mãos do Ocidente é a debilidade do sentido de Estado em terras islâmicas. Hoje em dia, contudo, constroem-se Estados artificiais por meio da força. O Estado Ocidental, por seu turno, degenerou em Estado Providência, que vampiriza sua energia e suas reações vitais de defesa.


In: “La libre Belgique”, 28 de dezembro de 1956. Tradução: Permanência

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Sobre a necessidade de uma fé mais profunda

Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O.P.

Deve-se, desde o início, falar da necessidade de uma fé mais profunda, por causa dos perigos provindos de erros gravíssimos, atualmente espalhados pelo mundo, e por causa da insuficiência dos remédios a que freqüentemente recorremos contra eles.

Os perniciosos erros que se espalham pelo mundo, tendem à descristianização completa dos povos. Ora, isto começa com a renovação do paganismo no século XVI, ou seja, com a renovação da soberba e da sensualidade pagã entre cristãos. Este declínio avançou com o protestantismo, por sua negação do Sacrifício da Missa, do valor da absolvição sacramental e, por conseqüência, da confissão; por sua negação da infalibilidade da Igreja, da Tradição ou Magistério, e da necessidade de se observar os preceitos para a salvação. Em seguida, a Revolução francesa lutou manifestamente para a descristianização da sociedade, conforme os princípios do Deísmo e do naturalismo — isto é: se Deus existe, não cuida das pessoas individuais, mas somente das leis universais. O pecado, por estes princípios, não é uma ofensa à Deus, mas apenas um ato contra a razão, que sempre evolui; assim, considerava-se o furto como pecado enquanto se admitia o direito à propriedade individual; porém, se a propriedade individual é, como dizem os comunistas, contrário ao que se deve à comunidade, nesse caso, é a própria propriedade individual que é furto.

Em seguida, o espírito da revolução conduziu ao liberalismo que, por sua vez, queria permanecer numa meia altitude entre a doutrina da Igreja e os erros modernos. Ora, o liberalismo nada concluía; não afirmava, nem negava, sempre distinguia, e sempre prolongava as discussões, pois não podia resolver as questões que surgiam do abandono dos princípios do cristianismo. Assim, o liberalismo não era suficiente para agir, e após ele veio o radicalismo mais oposto aos princípios da Igreja, sob a capa de “anticlericalismo”, para não dizer anticristianismo. Assim, os maçons. O radicalismo, então, conduziu ao socialismo e o socialismo, ao comunismo materialista e ateu, como agora na Rússia, e quis invadir a Espanha e outras nações negando a religião, a propriedade privada, a família, a pátria, e reduzindo toda a vida humana à vida econômica como se só o corpo existisse, como se a religião, as ciências, as artes, o direito fossem invenções daqueles que querem oprimir os outros e possuir toda propriedade privada.

Contra todas essas negações do comunismo materialista, só a Igreja, somente o verdadeiro Cristianismo ou Catolicismo pode resistir eficazmente, pois só ele contém a Verdade sem erro.

Portanto, o nacionalismo não pode resistir eficazmente ao comunismo. Nem, no campo religioso, o protestantismo, como na Alemanha e na Inglaterra, pois contém graves erros, e o erro mata as sociedades que nele se fundam, assim como a doença grave destrói o organismo; o protestantismo é como a tuberculose ou como o câncer, é uma necrose por sua negação da Missa, da confissão, da infalibilidade da Igreja, da necessidade de observar os preceitos.

O que, pois, se segue dos erros citados no que diz respeito à legislação dos povos? Esta legislação torna-se paulatinamente atéia. Não somente desconsidera a existência de Deus e a lei divina revelada, tanto positiva como natural, mas formula várias leis contrárias à lei divina revelada, por exemplo, a lei do divórcio e a lei da escola laica, que termina por tornar-se atéia, nos três graus: escolas primárias, liceus ou ginásios e universidades, nas quais freqüentemente reduz-se a religião à história mais ou menos racionalista das religiões, na qual o cristianismo somente aparece como no modernismo, como uma forma agora mais alta da evolução de um senso religioso que sempre muda, de modo que nenhum dogma seria imutável nem imutáveis os preceitos; por fim, vem a liberdade total de cultos ou religiões, e da própria impiedade ou irreligião. Ora, as repercussões destas leis em toda sociedade são enormes; tome, por exemplo, a repercussão da lei do divórcio: qualquer que seja o ano, qualquer que seja a nação, milhares de famílias são destruídas pelo divórcio e deixam sem educação, sem direção, crianças que terminam por se tornar ou incapazes, ou exaltadas, ou más, por vezes, péssimas. Do mesmo modo, saem da escola atéia, todos os anos, muitos homens ou cidadãos sem nenhum princípio religioso. E portanto, em lugar da fé, da esperança e da caridade cristã, têm eles a razão desordenada, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, o desejo de riqueza e a soberba de vida. Todas essas coisas são erigidas em um sistema especial materialista, sob o nome de ética laica ou independente, sem obrigação e sanção, na qual às vezes remanesce algum vestígio do decálogo, mas um vestígio sempre mutável. Se, porém, os efeitos dolorosíssimos destes erros perniciosos ainda não aparecem claramente na primeira geração, na terceira, quarta e quinta se manifestam segundo a lei da aceleração na queda. — É como na aceleração da queda dos corpos: se numa 1a. etapa da descida, a velocidade é como que 20, numa 5ª será como que 100. E isto se contrapõe ao progresso da caridade, que, segundo a parábola do semeador, é por vezes 30, 50, 100 para um.

É a verdadeira descristianização ou apostasia das nações. E isto foi exposto justamente na longa epístola do grande católico espanhol Donoso Cortes escrita ao Cardeal Fornari para que a apresentasse à Pio IX; o título dela é: Sobre o princípio generativo dos graves erros hodiernos (trinta páginas) e Discurso sobre o estado atual da Europa (1830). Cf. Opera do mesmo autor 5 vol. Madrid 1856: trad. Fr, 1862, t. II, p 221, ss; t. I, p 399; trad. It. 1861. Em seguida, a mesma série de erros foi exposta no Silabo de Pio IX, 1861 (Dz. 1701).

O princípio destes erros é: Se Deus existe, não cuida das pessoas individuais, mas somente, das leis universais. Daí o pecado não ser uma ofensa contra Deus, mas somente contra a razão, que sempre evolui. Disto segue que não existiu o pecado original, nem a Encarnação Redentora, nem a graça regenerativa, nem os sacramentos que causam a graça, nem o sacrifício e, por isso, não é útil o sacerdócio, nem é útil a oração.

No fundo, o Deísmo não parece verdadeiro, pois se os homens individualmente não precisam de Deus, porque se admitiria que Deus existe no céu? É preferível admitir que Deus se faz na humanidade, que é a tendência mesma ao progresso, à felicidade de todos, sobre a qual falam o socialismo e o comunismo.

Portanto, qual é, segundo este princípio, o modo de discernir o falso do verdadeiro? O único modo é a livre discussão, no parlamento ou em algum outro lugar, e esta liberdade é, portanto, absoluta, nada pode ser subtraído à sua jurisdição, nem a questão do divórcio, nem a necessidade da propriedade individual, nem a da família ou da religião para os povos.

Assim, a discussão fica libérrima, como se não existisse a Revelação divina; se se objeta, por exemplo, que o divórcio é proibido no Evangelho, isto pouco importa.

Destas coisas nascem, como é patente, grandes perturbações, inúmeros abortos, crimes, e não se encontra remédio, senão o de aumentar cada vez mais a polícia ou o exército.

Mas, a polícia obedece àqueles que estão no poder e não raro, depois destes, vêm seus adversários e ordenam o contrário. De outra parte, tendo-se suprimido a propriedade privada, suprime-se, de modo geral, o patriotismo, que é como a alma do exército.

Donde estes remédios não serem suficientes para conservar a ordem e evitar as graves e intermináveis perturbações, pois não mais se admite a lei divina, e nem a lei natural escrita por Deus em nossos corações (E tudo isso é uma demonstração per absurdum da existência de Deus.)

Neste caso, é para se concluir com Donoso Cortes que estas sociedades, fundadas sobre princípios falsos ou sobre uma legislação atéia, tendem para a morte. Nelas, com o auxílio da graça, as pessoas individuais podem ainda se salvar, mas estas sociedades, como tais, tendem para a morte, pois o erro, sobre o qual se fundam, mata, como a tuberculose ou o câncer que, progressiva e infalivelmente, destrói nosso organismo. — Só a fé cristã e católica pode resistir a estes erros, e tornar a cristianizar a sociedade, mas, para isso, requer-se uma condição, uma fé mais profunda, conforme a Escritura: « Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé. » (1 Jo 5, 4).


(De Sanctificatione Sacerdotum, intro., tradução: Permanência)

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A COVARDIA É UM PECADO E, EM ALGUNS CASOS, MUITO GRAVE

Pe. Leonardo Castellani, já no final de sua longa e combativa vida...


Pe. Leonardo Castellani

No quarto domingo depois da Epifania, a Igreja lê, na Missa, a narração da Tempestade no mar, que é contada pelos três Sinópticos, segundo o texto mais breve de todos, que é o de São Mateus: tem apenas quatro versículos, mas a narração é feita com energia tão formidável, que parece um gravado em cobre ou madeira, com quatro traços principais. São Mateus é o mais saboroso e enérgico dos três Sinópticos. A Bíblia de Bover-Cantera diz: "Este Evangelho pertence à literatura escrita; o de Marcos, à oral". É um erro grave que denota muito atraso em exegese. Com toda certeza, os quatro Evangelhos pertencem ao gênero que hoje lingüistas, etnólogos e psicólogos chamam estilo oral; e foram recitados de memória antes de serem fixados em pergaminho — ao menos os três primeiros — como as rapsódias de Homero, o Vedanta, o Corão, o Poema del Myo Cid e, em realidade, quase todos os monumentos religiosos ou épicos da Antiguidade. Esta noção, que hoje em dia se possui cientificamente, resolve de um golpe a falsa Questão Sinóptica, que preocupou a eruditos durante dois séculos; e que consiste em terem os Evangelhos, por um lado, algumas diferenças entre si e, por outro, uma concordância maciça; como pode se ver neste relato que os três Sinópticos trazem. Isto deu causa a uma confusão enorme na cabeça dos sábios alemães, alguns dois quais chegaram a negar a autenticidade destes três documentos religiosos, até que Marcel Jousse descobriu as admiráveis leis do estilo oral.

Coisa incrível: há uma tempestade tal no Mar de Tiberíades, que as ondas invadem a barca dos pescadores; e Jesus Cristo dorme. Fingiria dormir, como dizem alguns, para "provar seus discípulos"? Não, dorme, com a cabeça apoiada em um banco. Essa maneira de experimentar os outros com coisas fingidas é uma palhaçada inventada por algum mal mestre de noviços: a única coisa que prova verdadeiramente é a vida, a verdade, a realidade; não as ficções. Tampouco é verdade que Deus tenha proibido a Eva o Fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal para prová-la; proibiu-o porque, simplesmente, este fruto não lhe convinha, nem a ela nem a ninguém. Deus não faz tolices, mas há gente inclinada a atribuir-Lhe as tolices próprias. Deus fez o homem a sua imagem e semelhança; mas o homem retribuiu; porque, quantas vezes o homem não refez a Deus à sua imagem e semelhança!

Jesus Cristo é notável: dorme de dia, no meio de uma tormenta; e de noite deixa a cama e sobe até uma colina, para rezar até a madrugada. Não o despertam o bramir do vento, o golpe da água, os gritos dos marinheiros mas, à noite, o desperta um gemido ou uma mulher com hemorragia que lhe toca o vestido. Dona Madalena, minha avó, dizia: "Jesus Cristo é bom, não digo nada, mas, quem O pode entender?" Só uma criança ou uma animal podem dormir nestas condições em que os três Evangelistas dizem que Cristo realmente "dormia"; e também um homem que esteja tão cansado como um animal e que tenha uma natureza tão sã como a de um menino. Sabemos que muitos homens de natureza privilegiadamente robusta podiam dormir quando quisessem; como Napoleão I, por exemplo, do qual se conta que podia fazer isto: dormir quando lhe parecia bem, sobretudo nos sermões; e foi preciso despertá-lo na manhã da batalha de Austerlitz. Ao contrário, Napoleão III, seu sobrinho, não pregou os olhos na noite do golpe de Estado de 1851 e se levantou três vezes para ver se tinha dormido a sentinela. Isso porque Napoleão I foi um herói; mas, Napoleão III, uma imitação de herói: um palhaço. Bom, o fato é que Cristo dormia, e seus discípulos o despertaram dizendo algo que varia nos três Evangelistas; mas, na realidade, devem ter gritado não três, mas umas doze coisas diferentes pelo menos; que se resumem nesta: "vamos morrer!" Não vos importais se "vamos morrer"? que traz São Lucas como resumo de toda a gritaria. O que disse São Mateus, que estava ali, foi isto: "Senhor, ajuda-nos, que perecemos". Cada um disse o melhor que soube, e isto é tudo. O que lhes disse Cristo — nisto concordam os três relatos — foi, "covardes". A Vulgata latina traduz "Modicae fidei", ou seja, "homens de pouca fé"; mas Cristo, em grego ou aramaico, lhes disse: "covardes". Um homem que grita quando entra água em sua barca em uma tempestade do Mar da Galiléia, que são breves mas violentas; supondo até que tenha gritado um pouco demais, é covarde? Para mim, não é covarde. Mas para Jesus Cristo, é covarde. E Jesus Cristo não gosta de covardes. A Igreja ("a barca de Pedro", como é chamada) teve muitas tempestades e há de ter ainda outra que está profetizada, na qual as ondas entrarão a bordo e parecerá realmente que os poucos que estão dentro, morrem. Cristo parece ter conservado seu costume juvenil de dormir nestes casos; e também sua idiossincrasia de não amar a covardia. A covardia é pecado? Sim; e, em alguns casos, muito grave. Os Apóstolos tinham uma maneira de pregar que, se me deixassem, eu não usaria outra: trata-se de fazer uma lista de pecados grandes, recitá-la e depois dizer: "Nenhum destes entrará no Reino dos Céus. Basta" Assim, São Paulo disse: "Não vos enganeis, irmãos; que nem os idólatras, nem os ladrões, nem os adúlteros, nem os avarentos, nem os efeminados nem... e assim continua... entrarão no Reino dos Céus". Hoje em diz deveria pregar-se assim, de modo simples... é nossa opinião. Pois bem, São João, no Apokalypsis, que é uma profecia sobre os últimos tempos, acrescenta à lista de pecados outros dois que não estão em São Paulo: "os mentirosos e os covardes". O qual parece indicar que, nos últimos tempos, haverá um grande esforço de mentira e de covardia. Que Deus nos encontre confessados. A covardia em um cristão é um pecado sério, porque sinal de pouca fé em Cristo ("covardes e homens de pouca fé") que provou ser um homem "a quem o mar e os ventos obedecem" — como disse o Evangelho de hoje — ao lado de quem, portanto, ter medo não é coisa bonita; nem mesmo lícita. Júlio César, em uma ocasião parecida, não permitiu a seus companheiros que se assustassem. "Que temeis?" Levais César a sua boa estrela", lhes disse. Por mais forte razão Cristo, que é criador das estrelas. O que governa o mundo são as idéias e as mulheres, disse alguém. As idéias, não duvido. As mulheres, teria de se provar. Que sucederia se, na Argentina, surgisse uma S. Teresa de Jesus, que persuadisse a todas as mulheres deste propósito: "Não me casarei com nenhum homem que seja covarde!" Creio que cairia a tirania atual, e que não subiria ao poder mais nenhum tirano.


(extr. de "El Evangelio de Jesucristo ", tradução: PERMANÊNCIA)

CATARINA DE SENA

Gustavo Corção


No dia 30 de abril a Igreja comemora a festa de Santa Catarina, que viveu numa das épocas mais perturbadoras da história do Ocidente tanto para o mundo, que nos fins do século XIV se despedia da civilização medieval e preparava os critérios de uma nova civilização, como para a Igreja, que sofria a divisão, o cisma, a crise do papado, e já começava a sentir as aflições que cem anos mais tarde produziriam a Reforma.
Tudo foi paradoxo e contraste na vida de Catarina. Alma contemplativa, nasceu numa turbulenta família italiana e teve de se envolver nos mais intrincados problemas da política de seu tempo. Humilde filha de um tintureiro de Sena, tornou-se pela força das circunstâncias conselheira dos Papas, diretora espiritual de seu diretor, e mãe de sua mãe. Analfabeta, deixou no seu Epistolário e no Diálogo, obras ditadas aos fiéis secretários que se revezavam na árdua tarefa de acompanhar os passos e os ensinamentos da santa, uma doutrina que até hoje serve de guia espiritual para muitas almas que procuram o caminho do Reino de Deus. Realmente, tudo foi contraste na vida da moça impetuosa que é a Joana d’Arc da Itália e que nada fica a dever à heroína francesa.
Lembrei-me de escrever estas linhas de homenagem à dolce mamma Catarina, porque ultimamente tenho pensado muito na moleza e na tolerância dos tempos modernos, que nos mais altos lugares são apregoados como virtudes máximas. Apeguemo-nos à adamantina dureza da santidade. Santa Catarina de Sena jamais abriria a boca, jamais emprestaria o seu sorriso de virgem ardorosa e pura para pronunciar melosas declarações de incondicional tolerância e falsa bondade. Catarina de Sena tinha ódios. Santa Catarina de Sena não saberia, jamais, fazer um programa de promoção do Reino de Deus naquele tom de amaciamento da vontade e de derrame sentimental. O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, é que não basta o sentimento enternecido, nem basta traçar na areia a tênue linha que separa o bem e o mal. O que nos ensinam os santos é que é preciso, resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio, e cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa moça de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de Sena, é que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo amor. E é por isso que a Igreja, no dia de sua festa, dizia no Intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem, fórmula que bem exprime o claro-escuro, ou melhor, o preto-e-branco da vontade bem polarizada pelos mandamentos de Deus.
Santa Catarina de Sena poderia ser chamada a pregadora da santa nitidez. E não só a da vontade, a do preto-e-branco do ódio e do amor, mas também a da inteligência. Toda a doutrina ensinada por Catarina de Sena gira em torno de dois eixos principais que têm particular importância em nossos dias. O primeiro, relativo à ordem do conhecimento, consiste no preceito: “conhece-te a ti mesmo, em Deus”, que Etienne Gilson chamou de socratismo cristão, e que marca toda a espiritualidade da Idade Média, desde Agostinho até Catarina. O segundo consiste no preceito de combater e esmagar a vontade própria, fonte e origem de todos os pecados.
De início convém notar que o “conhece-te a ti mesmo” de Catarina de Sena não tem o sentido de introspecção psicológica, nem o mais alto de exame de consciência. Ambos são bons e úteis, cada um em sua ordem, mas o conhecimento básico que Catarina tem como preceito é de ordem ainda mais elevada. É preciso que a alma se conheça em Deus, que se reconheça como criatura, como ser sustentado pela Causa Primeira, mantido na existência pela vontade criadora de Deus. É preciso que a alma se ponha diante do Senhor e que, nesse refulgente espelho, descubra o seu Nada, o Não-Ser que só é ser por favor, por misericórdia, por bondade de Deus.
Será útil, a cada um de nós, o conhecimento de sua fisionomia psíquica e de sua situação moral, mas nada é menos socrático e menos freudiano do que o conselho de Catarina de Sena. Tanto o antigo como o moderno, cada um em sua pauta cultural, anunciavam a recuperação do homem por uma tomada de consciência e por uma recuperação de si mesmo por seu próprio esforço. Há um racionalismo antropocêntrico em Sócrates e em Freud, que é o oposto do ensinamento catarineano. O “conhece-te a ti mesmo” de Catarina é um conhecimento teologal, um conhecimento em confronto com Deus, um conhecimento que coloca a recuperação do homem num ato primeiro de renúncia, de apagamento e de humildade.
Não se trata de apreciar as peculiaridades de meu ser singular concreto, não se trata de começar por esse tipo de experiência que está na base de todos os existencialismos modernos, e sim de uma experiência fundamental, primeira, em que a alma se reconhece existente por um ato da vontade criadora de Deus, e daí, dessa primeira confrontação tira a fundamental atitude para a vida de relação com o mundo e com seu Criador. Não se diga, porém, que o “conhece-te a ti mesmo” catarineano é uma fórmula puramente essencial, puramente relativa à natureza universal do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Não se trata de pensar somente em termo universais, assim como quem diz: o homem é uma criatura de Deus. Não. Trata-se de uma experiência mística, com toda a força existencial, com todas as dimensões do presente concreto e prático.
Quem se conhece, conheça-se a si mesmo, João ou Maria, conheça-se como alma existente diante de Deus. E descubra que é Nada se pretende por si mesma a ser alguma coisa; e reconheça que deve tudo, não somente os adjetivos que a adornam como também o substantivo nuclear de seu ser. A fórmula catarineana não exclui outros conhecimentos mesmos e posteriores, mas exclui categoricamente a primazia de qualquer outro conhecimento reflexo que não seja feito em confronto com o Ser divino.
Mais de uma vez Catarina adverte os seus discípulos contra as introspecções puramente humanas que só geram pecado e confusão. Para descermos aos nossos porões, para nos apalparmos e nos descobrirmos, é preciso antes de qualquer passo inseguro, acendermos a vela da Fé, o lumen Christi que vem da mesma fonte de onde emanou o nosso ser.
Repouse, leitor, o espírito perturbador pelas agitações do dia e pondere bem o que devemos a Deus. Aos homens devemos muita coisa que nos qualifica e nos valoriza. Aos nossos próprios pais devemos um dos mais importantes elos, mas ainda um elo da cadeia que se prolonga e que deve estar presa em algum Ser imóvel e não causado. A outros homens devemos coisas menores e mais superficiais: um favor, um ensinamento, um conselho, uma ajuda. A Deus devemos o existir que é coisa mais ampla e fundamental do que o viver. E é essa meditação que Catarina coloca na base de sua doutrina. “Conhece-te a ti mesmo, em Deus” é um primeiro ato de humildade, um primeiro e fundamental juízo de valor.
O mundo, depois de Catarina de Sena, seguiu caminhos diferentes. Não foi “na doce cela do conhecimento de si mesmo e da bondade de Deus” que o mundo ocidental construiu a nova civilização do individualismo orgulhoso. Estamos hoje em outro ponto da história em que, depois de tantas e tão cruéis experiências, talvez se encontrem ouvidos para a doutrina que coloca o homem no seu justo lugar: elevado, se ergue as mãos para Aquele que o pode enaltecer; rebaixado, se por si mesmo pretende subir. Há muitos problemas materiais e espirituais no mundo de hoje. Há milhares de problemas técnicos, desde o aproveitamento da energia nuclear até o aumento da produtividade agrícola. Há problemas políticos e culturais; há anseios de novas formas no domínio das artes, e anseios de novas experiências em todos os domínios da vida. Uma coisa, entretanto, permanece invariável. E enquanto não soubermos reconhecer a verdadeira colocação de nosso ser, enquanto não soubermos o que somos e o que não somos, vãs serão todas as pesquisas do universo e, de todos os esforços de todos os estudos, só tiraremos pecado e confusão.

O Globo

Um absurdo, mas em consonância com a lógica moderna e revolucionária

O saudoso e ilustre filósofo Professor D. Rafael Gambra Ciudad, que infelizmente já não está entre nós, pinta-nos um quadro pitoresco, porém dentro da lógica revolucionária do igualistarismo torpe. Aborda dentro do ponto vista estritamente constitucional acerca do que poderia ser a futura Rainha de Espanha.


Rafael Gambra Ciudad



“Aqui tratamos o tema da futura Rainha de Espanha só em hipótese ou possibilidade – futuríveis, como dizem os filósofos -, mas sempre dentro do marco constitucional vigente. Isto assente, pensamos que a futura Rainha de Espanha pode ser um negro homossexual, companheiro sentimental ou parceiro de fato do Rei, de religião muçulmana ou sem religião. Porque não? Pensa-se espontaneamente que deve ser uma mulher.
Mas isto seria com mentalidade preconstitucional e antidemocrática. A Constituição baseia-se na igualdade e na não discriminação. Se as mulheres podem ser militares ou guardas civis, porquê um homem não poderá ser rainha ou consorte ou parceiro do rei? Esta discriminação sexual está politicamente abolida. E porque há-de ser heterossexual? Isso dependerá da livre orientação sexual do monarca. Outra discriminação do passado. E porquê de raça branca? Discriminar raças é a mais odiosa discriminação para uma mente democrática. Racismo puro. E porquê católica? Esta discriminação seria hoje odiosa até para o Vaticano progressista. Assim, pois, uma Rainha varão, negro, homossexual e muçulmano seria uma opção politicamente correta. E objetar algo, fascismo puro.”

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O QUE DEUS UNIU

Gustave Thibon


VIDA CONJUGAL E SACRIFÍCIO

Se há tarefa tragicamente urgente para o moralista moderno é a de lembrar aos homens a noção do sacrifício. Todos os desastres, todas as misérias do casamento, procedem do esquecimento desta necessidade. Não concebo um casamento feliz sem sacrifício mútuo. Não há nisto nenhum paradoxo. A primeira condição da felicidade é não a procurar. Nesta ordem de idéias é lícito dizer, pondo ao contrário as palavras evangélicas: Não procurei e encontrareis.

Um homem nobre esforçar-se-á por viver como um homem; um homem vil procurará viver feliz. O último procurará na terra as coisas e os seres que o poderão satisfazer; o primeiro procurará os seres e as coisas a quem se possa imolar. Não «arranjamos» uma esposa, damo-nos a ela. Casar é talvez o modo mais direto e mais exclusivo de deixar de pertencer-se. Chesterton, lendo um jornal americano onde dizia: «Todo o homem que se casa se deve convencer de que renuncia a cinqüenta por cento da sua independência», fazia notar: «Só no Novo Mundo é possível um otimismo deste gênero!».

O segredo da felicidade conjugal está em amar esta dependência. O ser que vive ao nosso lado, devemos amá-lo menos na medida do que nos dá que na medida do que nos custa.

A vocação do casamento consagra-nos ao nosso cônjuge. Estas palavras têm um grande alcance. Dão sentido a todos os nossos deveres e a todas as dores da vida comum. Fazem sobretudo da felicidade conjugal, não há uma espécie de sacrifício estéril, mas um ato religioso do mais alto valor humano.

Já não sabemos ser fiéis porque não sabemos sacrificar-nos. Tantos homens há que só amam pelo prazer imediato... Condenam-se, deste modo, a conhecer apenas a superfície do objeto amado, e, quando esta superfície os desilude, a trocá-lo por uma outra superfície, e assim por diante.

Andar à volta de tudo e não chegar ao centro de nada, não será o que alguns denominam plenitude e liberdade? É de tal maneira mais fácil correr do que aprofundar! Mas aquele que quer saborear a profundidade de uma criatura deve saber sacrificar-se por essa criatura; o seu amor deve superar as decepções, superar o hábito; mais ainda, deve alimentar-se dessas decepções e desse hábito. O amor humano tem a sua aridez e as suas noites; também ele não encontra o seu centro definitivo senão para além da prova sofrida e vencida. Mas, uma vez chegado a esse ponto, ele saboreará a riqueza, a pureza eterna da criatura pela qual se imolou. Porque, se a criatura é tremendamente limitada em superfície, é infinita em profundidade. É profunda até Deus. Sempre cantaram os poetas esta captação amorosa do eterno através do ser efêmero:

Tu que passas, tu que desvaneces,
busquei-te para além dos dias e das sombras,
sobre as praias invariáveis da vontade eterna...
Desci às tuas entranhas,
mais além dos latidos do teu coração,
mais adentro que a fonte das tuas promessas
até ao centro solene onde a tua vida se une à Vida,
até ao fremir irrevogável,
até à palpitação criadora de Deus!
― Eu amo a tua alma!


Chegou a falar-se do que a vida conjugal tem de banal, de monótono, de terra à terra. Bem sabemos quanto o homem é capaz de banalizar e de prostituir as coisas mais profundas. Mas, se a vida conjugal é muitas vezes vulgar, que se poderia dizer da vida sexual extra-conjugal? Creio que uma das mais sutis malícias do demônio é tentar persuadir os homens de que a ordem é a morte e a desordem a vida. Na realidade, nada mais vulgar do que o vício. O demônio não é profundo ― não é mais do que um revoltado. É um desertor que tenta fazer-se passar por evadido...

As humildes realidades da vida quotidiana, o cortejo de pequenos deveres e de pequenos sofrimentos, em nada deverão alterar a pureza do amor nupcial. O verdadeiro ideal tira nova seiva destas pequenas coisas. O realismo da vida conjugal não tem por função profanar ou estiolar o ideal primitivo dos esposos, mas purgar este ideal das ilusões que com ele se misturam, e não reter dele mais do que a sua suprema essência. Na alma dos esposos que são dignos desse nome, a união do mais elevado amor e das necessidades mais terrenas, mais materiais, cria uma espécie de síntese do ideal e do real, uma espécie de realismo do ideal, se assim me posso exprimir, que em parte alguma poderá existir em tal grau.

Josefina Soulary disse que Deus «se só estivesse lá em cima, não estaria em parte alguma».

O casamento é, por excelência, a vocação que permite pôr Deus no que a vida tem aparentemente de mais comum e de mais banal.

Ia-me esquecer de uma observação importante. O casamento deve ser um sacrifício, é certo. Mas um sacrifício recíproco. Haverá algo de mais vão, de mais prejudicial mesmo, do que uma imolação em sentido único? Dois egoísmos juntos travam-se mutuamente e, de certo modo, neutralizam-se. Que caldo de cultura não seria para as tendências egoístas de uma criatura o sentir em torno de se uma atmosfera de dedicação infatigável! Todos conhecemos lares em que o espírito de sacrifício de um dos esposos faz do outro um monstro de exigência e de egoísmo. Cada esposo deve tirar do espetáculo de generosidade do seu cônjuge, não um pretexto para fazer as suas vontades, mas um motivo para se imolar mais a si mesmo.

AMOR E ORAÇÃO


Sacrificar-se a uma criatura, amá-la apesar do seu nada, por causa do seu nada, amá-la com um amor mais forte e mais puro que o desejo de felicidade, tudo isto só é possível se o amor humano se conjuga e se amalgama com o amor eterno.

Não convém divinizar o ser amado. Esta idolatria conduz, a breve prazo, à indiferença ou à repulsa. O autêntico amor nupcial acolhe o ser amado não como um Deus, mas como um dom de Deus em que todo o divino está escondido. Não o confunde nunca com Deus e não o separa nunca de Deus.

«Ela olhava para o alto e eu olhava nela», escreve Dante falando de Beatriz. Nisso reside o supremo segredo do amor humano; beber a pureza divina nos olhares, na alma, no dom de uma criatura.

«Sentir como o ser sagrado freme no ser querido», assim definia magnificamente Vitor Hugo, o grande amor. Num tal grau de amor, o ser amado é verdadeiramente insubstituível: dado por Deus, ele é único como Deus; um mistério inesgotável habita nele. Os verdadeiros esposos conservam eternamente almas de noivos; a posse aprofunda para eles a virgindade. Quanto mais são um para o outro, mais fome têm de ser um para o outro. É uma maneira sagrada de possuir as coisas que, em vez de matar o desejo, como na satisfação da carne, o exalta e transfigura. Aquele que beber desta água terá ainda sede... Como poderia estiolar-se o amor dos esposos, se eles foram criados e unidos para dar Deus um ao outro? A vida dos dois desenvolve-se e torna-se infinita numa oração única.

(Gustave Thibon, O Que Deus Uniu, Editorial Aster Ltda., Lisboa 1956)

A REFORMA INTELECTUAL E MORAL

Jean Madiran


A política moderna é essencialmente uma estratégia sem fé nem lei para a tomada do poder e para sua exploração; é portanto um despotismo sistemático e não acidental. Não está mais a serviço do bem comum temporal. É por isto que a palavra “política” e o fato político estão desacreditados, como estava desonrada a profissão das armas quando nasceu a cavalaria.
A reforma intelectual não visa a tomado do poder nem mesmo do poder cultural. Ela quer outra coisa: quer a restauração do aprendizado.
O homem é votado à aprendizagem e ao aperfeiçoamento, isto é, ao esforço de adquirir aquilo que é superior a ele mesmo: superior na ordem do saber, na ordem do saber fazer e na ordem da sabedoria. Quando, por princípio, se imagina que não há nada superior ao eu individual, à própria consciência e à própria vontade livre, o aprendizado não tem mais sentido, não há mais aperfeiçoamento. Estamos atualmente neste ponto. Todos os graus de ensino estão fundados na crença de que tudo se pode saber sem nada se ter aprendido. A isto se chama respeitar e cultivar a criatividade de cada um. Maurras caracterizou bem as duas atitudes mentais:

“Um moço que quer amadurecer pode dizer a si mesmo:

Com quem parecerei? Comigo mesmo? Com o que tenho de mais ‘eu-mesmo’? Acentuarei a minha personalidade, reforçando todos os traços de meu natural?

Como pode dizer também:

Tornar-me-ei parecido com alguma coisa de melhor e mais alta do que eu?”

Prender-se ao que há de mais “eu-mesmo” ou a “qualquer coisa de melhor e de mais alta do que eu”? Estas duas atitudes mentais poderíamos chamá-las, uma, moderna, outra, clássica, ou melhor natural. A reforma intelectual consiste em subir da primeira para a segunda. A modernidade consiste em descer da segunda para a primeira: neste caso já se suprime, de saída, a idéia de aprendizado porque não trata de tornar-se melhor mas de tornar-se cada vez mais “eu-mesmo”, sem se compreender que o verdadeiro modo, a única possibilidade de se tornar cada vez mais “eu-mesmo” é justamente se tornando melhor. No fundo existe aí, portanto, um qüiproquó diabólico, um infernal mal-entendido, como houve desde o princípio com o eritis sicut dii (“sereis como deuses”). Perseverar e crescer no ser que se é, eis a mais legítima aspiração; a aspiração natural do ser. O caminho aparentemente curto, o caminho enganador recusa reconhecer superioridades, submeter-se a elas, instruir-se, adaptar-se, conformar-se por elas, como se estas restrições de boa ordem infligissem uma diminuição à pessoa. Mas o desabrochar da personalidade não é a finalidade suprema: ela não será encontrada por acréscimo em lugar algum senão no final do caminho da humildade.
A história da humanidade mostra um progresso geral quase constante, quase contínuo: o progresso do poder do homem sobre a matéria. Este progresso não é, em si mesmo, uma ilusão. Mas ilude. Faz esquecer o outro aspecto da história da humanidade, também constante, que é a inconstância de seu valor intelectual e moral; inconstância de um século para outro, de uma época para outra, e até de uma idade para outra de uma mesma vida, como mostra a história do Santo rei David e ainda mais a do rei Salomão. Mas nenhuma história mostra mais nada quando se deturpa tanto o que ela conta quanto os critérios de julgamento. Hoje, na França, o recurso às lições da história é inoperante. A história que vem sendo ensinada aos franceses há um século foi pensada, fabricada, escrita com uma intenção passionalmente hostil à sua pátria e à sua religião. Henri Charlier foi educado sem fé nem batismo, num espírito perfeitamente maçônico. Passando pela primeira vez diante de Notre-Dame de Paris, conclui imediatamente que lhe tinham mentido, que os homens, a sociedade, a época que tinham construído a Igreja de Notre-Dame não estavam mergulhados no obscurantismo com lhe haviam dito. Ele pode formular para si mesmo, com certeza, tal conclusão porque tinha uma verdadeira percepção clássica; viu que da época da construção de Notre-Dame para a nossa não tinha havido progresso mas recuo. Progresso houve, sem dúvida, como sempre, mas do poder do homem sobre a matéria; recuo intelectual e moral. Mais ou menos no mesmo momento, a percepção política ou especulativa de Péguy, de Maurras, levavam-nos a observações análogas. Percepções raras, percepções excepcionais. Pois o olhar moderno foi preparado, habituado, condicionado para procurar no passado não mais o exemplo de realizações do bem comum temporal, mas precedentes revolucionários revelando as primeiras revoltas da pessoa individual em marcha para a conquista de sua autonomia moral. Disto se compõe um outro universo mental: o universo cultural e político que a televisão de cada dia ilustra, instala, impõe. A autonomia moral da pessoa é uma mentira. O homem moderno pensa que vai achar a liberdade nesta autonomia; acha a escravidão. Sua libertação depende de uma reforma intelectual e moral, a reforma de Péguy, de Maurras, de Henri Charlier.


“Itinéraires” n° 216 — Set—Out 1977 (Trad. De Anna Luiza Fleichman)
Permanência, n° 112/113, Mar-Abr 1978.
site: http://www.permanencia.org.br

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Alguns aforismos do livro “A Escada de Jacob” de Gustave Thibon

Gustave Thibon


A terra tanto pode encadear, como libertar...


Não separe o homem o que Deus uniu. Não confieis, amigo, nos idólatras que quebram e conspurcam a unidade. Não acredites nos que separam a alma da carne e caluniam o corpo. Nem tão-pouco nos que separam a carna da alma e mofam da pureza das alturas. Ama com todo o teu coração e com toda a tua alma. Há coisas em ti, enamoradas de voluptuosidades mais intensas ou de voos mais fáceis, que pretendem desfazer a unidade. Bem sei. A tua carne demasiado pesada, idealizará uma beatitude atascada, e o teu espírito, demasiado pronto, um voo de sonho e de nuvem. Mas, que importa? Religiosamente, incansávelmente, segura-te, tem mão em ti. Defende bem a tua imortal e frágil unidade. Ainda que seja para saciar a tua fome (mesmo de justiça e de amor), ou para repousar da tua grande fadiga, não permitas que nenhuma parte do teu ser proceda e avance sozinho. Se for necessário, caminha mais devagar. Mas sempre todo, em corpo e alma. Separa do espírito, a carne corrompe-se; e o espírito, separado da carne, empalidece, como flor desenraízada. E reduz-se a um fantasma. (p. 99)


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Nunca uma tal exigência de totalidade, de absoluto, de doação sem reservar e sem limites, trabalhou a humanidade, como no nosso tempo. Mas também – e é essa a tragédia das sociedades modernas – nunca uma sede assim totalitária, se orientou tão furiosamente, tão exclusivamente, para a parte, e que parte! Nunca o homem se tinha dado assim, tão concretamente, a simples abstrações: o sexo, o dinheiro, a raça, o estado, o proletariado... Procura-se monstruosamente o integral no exclusivo. Eis que soa a hora mais religiosa da humanidade e, também, a sua hora mais ímpia: nunca Deus foi ao mesmo tempo tão implorado e tão repelido pelo homem.
Satã – e é esse o seu último e mais sútil esforço – encarniça-se a captar e a corromper as energias especificamente religiosas da humanidade. Como dizia Shakespeare: “Divindade do inferno! Quando os demônios querem insinuar aos homens suas obras mais perversas, começam por sugeri-los sob uma forma mais ou menos celeste... É uma forma desvairada de idolatria, prestar às criaturas um culto que só a Deus pertence”. O diabo quase nada obteria do homem, se, para o enganar, não fingisse de Deus. E esta impostura não é difícil. O instinto de Deus, no homem, nada perdeu da sua força, mas é um instinto cego, que toteia e tropeça, e se arrisca a precipitar-se nãoo importa em quê.
(p. 137)

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o homem não recebe deuma só vez a sua humanidade. Não se merece ser pedra, animal ou anjo. Mas merece-se ser homem. Todos os outros seres são o que são. Só o homem se torna o queé. Pertence-lhe conquistar, se não a própria essência, pelo menos o seu enriquecimento vital.
(p. 110)


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Deus fala aos homens: Desgraçados! Confudem-me com a grandeza, com a sua grandeza. Julgam-me sublime, em relação a eles! Situam-me e exilam-me nas alturas, onde nem sequer pensam em chegar. Depois, sentindo-se incapazes de subir, esquecem-me. Mas eu não estou exclusivamente nas alturas. Estou em toda parte. Sou maior do que a grandeza, que se pode medir. Sou a Vida!
(p. 105)

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Stella rectrix – Lembra-te de que nunca possuirás o céu neste mundo. Mas ai de ti se deixas de erguer os olhos para o alto! Nem pelo de não poderes voar, tens o direito de te deixares atolar. Os Magos nunca tocaram, com as mãos, a estrela que lhes guiava os passos, E, no entanto, seguiram-na fielmente por entre as ciladas e os desertos e através de todos os 'desmentidos da experiência'. E o astro inacessível conduziu-os ao Deus do céu, que se escondia na terra. É que a terra não descobre o segredo de suas entranhas senão a quem tem os olhos erguidos para o céu.
Não tentes apagar o astro que não brilha senão para te guiar. Conserva-te fiel a ele. Haja o que houver, aconceteça o acontecer. E encontrás o ideal incorporado no real: a estrela do céu te ensinará o verdadeiro sentido da terra. (p. 106)

Arrogância ingênua

Dietrich von Hildebrand *

Uma forma peculiar de arrogância ingênua é crer que a época em que se vive é completamente diferente de todas as anteriores e que os problemas do passado já não existem. Embora não se diga isso abertamente, tende-se a admitir como certo que qualquer mudança representa algum tipo de progresso.
Pertence à essência da História que a atitude do Homem perante a vida sofra variações, que alguns valores ressaltem com mais claridade numa época do que em outra, enquanto outros recebem menos atenção do que antes. Além disso, num determinado período ganham mais força certos perigos que em outros momentos eram insignificantes.Contudo, mesmo que seja importante reconhecer esse ritmo próprio da natureza da História e do Homem, seria totalmente equivocado conferir a algumas épocas um significado arbitrário no que se refere a certos problemas humanos básicos. Em comparação com o que permanece inalterado, o que muda é secundário. Uma forma peculiar de arrogância ingênua é crer que a época em que se vive é completamente diferente de todas as anteriores e que os problemas do passado já não existem.Muitas pessoas acabam ficando intoxicadas por essa idéia tão pitoresca. É de se admirar que esse seu modo de pensar passe por alto que, se isso for certo, então todas as suas “novidades” e os seus “nunca antes visto” — dos quais se orgulham tanto — tornar-se-ão antiquados dentro de pouco tempo e já não estarão “de acordo com a realidade”... Esquecem-se de que, se tiverem razão e o “real” for somente aquilo que muda, terão que pagar um preço muito alto para poderem aquecer-se ao sol daquilo que “nunca existiu antes” e olhar com desdém para o passado. E o preço será este: terão ver que tudo aquilo que agora os deslumbra e satisfaz tem uma vida muito curta e em breve será lançado fora como sucata.Juntamente com a exagerada diferenciação entre as épocas — e com a ingênua arrogância que a acompanha — é comum encontrarmos a ilusão de que os tempos atuais, além de serem completamente diferentes de todos os anteriores, são também superiores a eles. Embora não se diga isso abertamente, tende-se a admitir como certo que qualquer mudança representa algum tipo de progresso.Em todo o caso, pode-se dizer em seu favor que esse conceito simplista do progresso segue normas válidas em si mesmas: ainda crê na verdade absoluta que, com o passar do tempo, será — ao menos espera-se que o seja — cada vez mais reconhecida. Mas é muito mais perigosa e de maior alcance a atitude mental que considera a realidade histórico sociológica de uma idéia como equivalente à sua validez e verdade. Essa atitude é muito mais perigosa porque transforma a verdadeira essência da verdade e dos valores em algo vazio.É preciso sublinhar enfaticamente a seguinte realidade: o fato de uma idéia, por assim dizer, impregnar a atmosfera durante algum tempo, ou de que numa determinada época prevaleçam certas expectativas e certas tendências, não nos dá a menor informação sobre a verdade ou falsidade dessa idéia, nem muito menos sobre a legitimidade das correntes de pensamento desse período em concreto.Se a História nos pode ensinar algo de absolutamente certo é o enorme perigo que há em que as pessoas se infectem com as correntes de pensamento equivocadas típicas do seu tempo. Esse perigo é maior quando acreditamos erradamente— segundo uma mentalidade ainda hoje muito difundida — que certas idéias, tendências e expectativas, simplesmente por dominarem a sua época, por saturarem o ar, devem ser consideradas como a expressão do “espírito do mundo” (Weltgeist, no sentido hegeliano) ou do “espírito da época” (Zeitgeist). A realidade histórico sociológica de uma idéia ou tendência não é nem tão irresistível que implique o dever de aceitá-la como um destino fatal, nem confere ao seu conteúdo qualquer tipo de dignidade: não torna um erro menos errado, nem uma atitude má menos má, nem faz com que algo objetivamente sem valor passe a ter algum.Deixar-se fascinar pelas tendências intelectuais do tempo presente é abdicar da própria liberdade espiritual; é deixar-se levar pelos vaivéns da História; é deixar-se arrastar pelas correntezas de uma época; é uma despersonalização. A atitude oposta é a de quem sempre emerge do tempo para vir ao mundo da verdade e dos valores morais, para compreender a mensagem e captar as verdades e os valores imutáveis que a hora presente possa conter como “tema”, mas à luz da eternidade. Mais concretamente, para nós, católicos, essa atitude significa uma constante conversio ad Deum, “conversão a Deus”
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*Dietrich von Hildebrand foi Professor de Filosofia na Universidade de Munique de 1918 a 1933. Foi professor de Filosofia na Universidade de Fordham (Nova York) de 1941 a 1960. Sua vasta e importante obra filosófica e de espiritualidade o coloca entre os maiores pensadores do século XX.

O medo e a inveja

Gustave Thibon



O medo e a inveja são dois sentimentos muito humanos, demasiado humanos, ai de nós!, de que ninguém está totalmente isento.
Que homem, perscrutando o fundo da sua consciência, poderá dizer sem mentir que nunca teve medo e que nunca sentiu uma sombra de despeito, diante da superioridade ou do êxito do próximo? Mas estes defeitos têm isto de particular: quase ninguém ousa reconhecê-los diante dos outros nem mesmo confessá-los no interior de si mesmo. Apelo aqui para a experiência de cada um. Todos os dias ouvimos pessoas confessarem-se sem dificuldade deste ou daquele comportamento condenado pela moral. Por exemplo, da propensão para a cólera ("eu cá não deixo ninguém pôr-me o pé sobre o pescoço") ou para a gula (as histórias de "comilões a toda a prova" abundam nas conversas) ou ainda para os pecados da carne. E não só confessam esses excessos, como até chegam a glorificar-se deles. A este propósito, conta-se o caso de um marselhês a quem o sacerdote perguntou, na confissão: "nunca enganou a sua mulher?", tendo ele respondido: -"Senhor prior, eu vim aqui acusar-me e não gabar-me!" Mas já alguém ouviu um homem declarar: sou um cobarde e encolho-me ao menor perigo? Ou ainda: sou um invejoso e as vantagens do próximo são intoleráveis para mim? Porque acontece assim? Muito simplesmente porque os outros defeitos podem ser atribuídos a um excesso de vitalidade mal dirigido, ao passo que o medo e a inveja são índice não só de fraqueza moral, mas também de inferioridade de natureza. E disto ninguém gosta de confessar-se... Assim, para escapar a esta confissão de inferioridade, demasiado dolorosa para o seu amor-próprio, o cobarde e o invejoso reagem disfarçando estes sentimentos miseráveis sob formas menos humilhantes, isto é, segundo a análise cruel de Nietzsche, dando-lhes a cor de virtude e de ideal. O medo reveste, por exemplo, a máscara do pacifismo. O cobarde mostra-se cheio de consideração e de compreensão para o adversário que o enfrenta ameaçador, faz-lhe todas as concessões possíveis, em nome da paz internacional ou social - pronto a esmagá-lo, quando a sorte o abandonar. Conheço um dos nossos célebres intelectuais franceses (cujo nome me abstenho de citar) que, aterrorizado pela invasão alemã, em 1940, fez o elogio da ordem nazi e, não menos cheio de medo, em 1945, ante a ameaça comunista, converteu-se em fervoroso apologista do entendimento com a Rússia, por qualquer preço. O medo tinha mudado de objecto, mas não de natureza. Quanto à inveja, ela manifesta-se em política sob o véu do igualitarismo, que confunde com a vontade de justiça. A reacção do invejoso diante de tudo o que lhe é superior resume-se nisto: "independentemente do que sejas, não vales mais do que eu e, se tens mais do que eu ou se pareces ser mais do que eu, é por um favor imerecido da nossa má organização social, que há-de ser varrida amanhã pela justiça revolucionária". É inútil sublinhar a importância deste factor dissolvente nas nossas pseudodemocracias... Estes passadores de moeda-falsa intelectual e moral são, uma vez mais, a prova da miséria do homem. Miséria da fraqueza e do egoísmo, intolerável para o orgulho, que o homem dissimula e justifica sob as aparências lisonjeiras da mentira. Os nossos vícios mais perigosos são os que disfarçamos de virtudes.

Paul Claudel (1868-1955)

Paul Claudel 1868-1955


Magnificat

(Cinco grandes odes”, 1907)


“Oh, os longos e amargos caminhos de outrora, do tempo em que estava só!

Caminhar em Paris, nesta, longa rua que desce para Notre-Dame!

Então, como o atleta que se dirige ao Estádio em meio a seus amigos e treinadores,

E alguém lhe fala à orelha, e o braço que abandona, e as luvas que lhe são ajustadas,

Eu marchava por entre os pés caídos de meus deuses.

Há menos murmúrios na floresta de Sant-Jean, no verão,

Menos gorjeio em Damasco, quando, ao ruído das águas que descem dos montes em tumulto

Se une o suspiro do deserto e a agitação dos altos plátanos à brisa da tarde,

Que palavras neste jovem coração cheio de desejos.

Oh, meu Deus, o filho da mulher vos é mais agradável que um touro novo.

E me encontro diante de Vós como um combatente que se curva

Não por se acreditar fraco, mas porque o outro é mais forte.

Vós me chamastes pelo meu nome

Como alguém que o conhecesse,

Vós me escolhestes entre todos de minha geração.

Oh, meu Deus, sabeis quanto o coração dos jovens é cheio de afeição e quando ele não se apega às suas máculas e vaidades

E eis que sois alguém, subitamente!

Aterrasteis Moisés com vossa força, mas estais em meu coração, assim como se eu não tivesse pecado.

Oh, como sou bem o filho da mulher! porque a razão, a lição dos mestres e o absurdo, tudo isso nada vale

Contra a violência de meu coração e contra as mãos estendidas desta criança.

Oh lágrimas! Oh coração fraco! Oh mina de lágrimas que correm!

Vinde, fiéis, e adoremos a criança que nasceu!”



Partage de Midi

<“Partilha do meio-dia”; 1905>



“Ao menos, vós, sabemos quem sois e com quem temos que nos avir.

Mas suponde alguém convosco.

Para sempre; e que se torne necessário tolerar em si mesmo um outro.

Ele vive, eu vivo; ele pensa e eu peso em meu coração seu pensamento.

Ele que fez meus olhos, não o poderei ver? Aquele que fez meu coração!

Não posso livrar-me dele. Vós não me compreendeis. Mas não se trata de compreender.

Uma palavra pode se compreender a si mesma?, mas, para que exista, é preciso que um outro a leia.

Oh, a alegria de ser completamente amado! o desejo de se abrir ao meio como um livro!

Em si mesmo apenas.

Ser totalmente claro, legível e sentir-se verdadeiramente

Pronunciado

Como uma palavra. sustentada pela voz e pela entonação de seu verbo.

Oh, o tormento de sentir-se soletrado como alguém que não chega ao fim!

Não me deixa repousar.

Fugi a esta extremidade da terra.

Eis-me em outra posição sobre o diâmetro, como alguém que

mede uma base para calcular uma distância astronômica

Longe da velha casa, como um ovo quebrado.

Eu que amava tanto as coisas visíveis. Oh, teria querido tudo ver, tudo possuir,

Não somente com os olhos, ou apenas com os sentidos, mas com a inteligência do espírito,

E tudo conhecer a fim de ser todo conhecido!

Mas Ele não me dá tempo. Eis-me em meio a esses povos e Ele me reencontrou,

E eu sou como um devedor que é perseguido e não sabe nem mesmo o que deve...

Que fazer? Onde está o meu pecado?

Sou chamado a dar

De mim mesmo, uma coisa que não conheço. Pois bem, eis todo meu ser! Eu me dou a mim mesmo.

Eis-me em vossas mãos. Tomais o que quiserdes...

Para ninguém sirvo a coisa alguma.

E é por isso que desejava entregar a Ele tudo o que possuía.

Ora, eu queria dar tudo,

Preciso retomar tudo. Parti, devo regressar ao mesmo lugar.

Foi tudo em vão. Nada feito. Tinha em mim

A força de uma grande esperança. Não a tenho mais. Não fui considerado apto.

Perdi a direção e a finalidade.

E assim sou reenviado, nu, com a vida antiga, seco, sem outra missão

Que a antiga vida por recomeçar, oh Deus! A vida separada da vida,

Meu Deus, sem outra esperança senão Vós que nada quereis de mim,

Com o coração ferido e uma aparente fortaleza”.

Fernando Rodrigues Batista

Quem sou eu

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Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot