segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A plenitude sonhada

Gustave Thibon (1903-2001), que em minha modesta opinião foi o escritor mais completo do século passado traz nas linhas a seguir passagens luminosas que constam de seu livro "Nuestra mirada ciega ante la luz" (Rialp, 1973), versão espanhola, e cuja versão original foi publicada em Paris, em 1955. Thibon, como já salientado aqui foi um camponês francês, magnífico conhecedor de Aristóteles cuja obra aprendeu em grego, pensador e escritor autodidata, que em 1964 recebeu o Grande Prêmio Literário da Academia Francesa. Com a sutileza e clareza que lhe era peculiar nos parágrafos abaixo o autor interpreta em chave divina o desejo de felicidade que inunda o coração de toda pessoa: «Na realidade, todo mundo busca a Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar»




«Como falarei aos homens?», se perguntava Saint Exupéry pouco antes de que sua voz se apagara no silencio eterno. É o tormento de todo homem que intenta escrever, não pelo puro afã de reunir palavras, nem pelo desejo de difundir idéias, senão para que seus irmãos participem de uma verdade e um amor que vivem em sua alma com mais força que ele mesmo. Onde encontrar as palavras que designem, que alcancem a fonte do ser? Onde encontrar os términos que transcendam além de si mesmos? E, antes de tudo, que é o homem? Um ser que pensa, que ama, que vai morrer e que está certo que vai. Pouco importa que se esforce em esquecer-se, que tente vendar os olhos inutilmente com as aparências: os olhos da alma não se cegam como os do corpo, e o homem o sabe. É sua única certeza, a única promessa que não há de falhar, o grande paradoxo da vida, cuja suprema verdade se encontra na morte.
Faça o que faça e deseje o que deseje, tanto se se aferra ao passado como se corra para o futuro, tanto se se busca como se fuja de si mesmo, tanto se se endurece como se se abandona, na sensatez como na loucura, o homem não tem mais que um desejo e uma meta: escapar das redes do tempo e da
morte, traspassar seus limites, chegar a ser mais que homem. Sua verdadeira morada é mais além, sua pátria está fora de suas fronteiras. Mas sua desgraça estriba - e aí está o ponto dessa perversão que chamamos erro, pecado ou idolatria- em que, enganado pelas aparências e buscando o eterno ao nível do efêmero, se distancia ainda mais da unidade perdida, da plenitude vislumbrada entre sonhos.
Haveria que fazer ver aos homens a maravilha da realidade divina que seu sonho presente oculta. Fazer-lhes compreender que a fome de Deus se esconde nas coisas em aparência mais distantes do divino: suas ocupações cotidianas, suas paixões terrenas, até mesmo seu materialismo, porque a matéria só tem valor como sinal do espírito. Na realidade, gira o mundo em busca de Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar. Todo mundo busca a Deus, posto que todo mundo busca o impossível. Se o supremo valor do homem consiste na superação do humano e na aspiração expressa ou tácita para o ser inefável que um Padre da Igreja grega chama «o mais além de tudo», nosso século não me parece indigno do beijo da eternidade. Talvez nunca como agora o homem sentiu-se amargamente encerrado em seus próprios limites. Assim como logrou a desintegração do átomo, há feito também estralar dentro de si todas as dimensões do humano. De tal modo se há esvaziado de seu equilíbrio natural e de suas seguranças terrestres que somente pode dete-lo contra o fundo do nada o contrapeso do absoluto.
Minha única ambição é convidar aos que me lêem a fazer coincidir seu olhar com está gota de luz eterna que é o vestígio e o gérmen de Deus em todo homem. Porque a morte - o único fato indiscutível do futuro- nos espera segundo a altura de nossos desejos, como uma noiva ou como um verdugo, e de todos os atos de nossa alma só subsistirá nossa participação naquilo que, por não proceder do tempo, não morrerá com ela. Cronos unicamente devora a seus filhos.
Por um momento me comprazia em ver ao homem tão despojado de si mesmo que não restava outro remédio senão acudir a Deus. No entanto, há outros momentos em que pergunto se ainda lhe resta substância humana suficiente para que possa prender nela o enxerto divino. O violentar de modo habitual os ciclos da vida, o desaparecimento progressivo das diferenças e das hierarquias, o indivíduo transformado em grão de areia e a sociedade em deserto; a sabedoria substituída pela erudição, o pensamento pela ideologia, a informação pela propaganda, a glória por publicidade, os costumes pelas modas, os princípios morais pelas formulas mortas, os pais por tutores; o esquecimento do passado tornando estéril o futuro; o desaparecimento do pudor e do sentido do sagrado; a máquina rebelando-se contra seu autor e recriando-o a sua imagem; todos estes fenômenos de erosão espiritual, aliados ao orgulho exacerbado de nossas conquistas materiais não correm o risco de conduzir-nos para esse grau limite de esgotamento vital e auto suficiência além da qual a piedade de Deus assuste, impotente, a decadência de tudo que é humano?
Como mostrar aos homens esta dimensão divina que, ao entregar-lhes o infinito, lhes curaria de sua aberração? Ao homem moderno, antes de lhe falar de Deus deve-se ajudar-lhe a dar-se conta do vazio e falsidade que encerram todos os ídolos pelos quais inutilmente tenta substituir a Deus. Há que fazer-lhe descobrir, como quer Santa Teresa, que seu desejo não tem remédio, que é insaciável e mais real que todos os objetos com os quais até agora tem tentado em vão satisfazer-se. Assim compreendido, o mesmo desejo o irá levando até Deus. O diagnóstico indica o remédio: analisando as causas profundas da sede que diretamente se chega a fonte.
Todos fomos criados para o divino, mas também para o sensível. Sonhamos ao mesmo tempo na plenitude espiritual e no amor humano e por isso e por isso facilmente somos enganados. Quando a beleza sensível se nos oferece, já não nos basta aceita-la como tal, quer dizer, como uma coisa efêmera e limitada, e lhe pedimos que sacie nossa sede de mistério e de absoluto. Esperamos dela um Deus a quem possamos trazer em nossos braços, a prova do espírito pelos sentidos e do eterno pelo tempo... Até que chega a hora inevitável e nos damos conta de que o que trazemos em nossos braços não é Deus, senão o nosso desejo desorientado mas incurável d´Ele.
Ditosos então se descobrirmos que esse ser impotente para saciar nossa sede sofre também nossa mesma sede, e deste modo lograrmos associar nossas duas misérias em uma única prece. Essa é a única possibilidade de supervivencia do amor humano. Não se trata de encontrar a Deus um no outro, senão de busca-lo juntos. A pobreza reconhecida e aceita nos leva para verdadeira riqueza, ainda que a emissão de falsa moeda só pode nos conduzir a ruína.
«Amor é a redução do universo a um só ser e o aprofundamento nesse único ser até chegar a Deus» (Víctor Hugo). A fórmula é extraordinária por sua precisão e densidade.
Reduzir em superfície (o universo se desvanece em aras de um só ser) e aumentar em profundidade (descobrimos a Deus através de um só ser penetrado a fundo). Em seu primeiro estágio, o amor é um pecado de idolatria (tu só); em segundo, já é a virtude da religião (Deus em ti). Toda alma se concentra em um só ponto desse imenso véu de aparências que chamamos universo, mas, nesse preciso ponto, o véu se desgarra e nos deixa ver a realidade divina.
Esta vida que amo com toda a ternura de um filho, com toda a paixão de um amante, me enche de dons que desbordam meus desejos, e ei de morrer com os olhos e o coração cheios de suas doces recordações. Mas, que é a recordação de uma imagem, mais que o reflexo e a promessa de um modelo?
Posso fazer algo melhor que desejar o modelo através de suas cópias? O mais puro que a terra tem me dado é o que me vinha de mais além da terra, e mais que um esboço de porvenir era uma chamada para a perfeição eterna.
O que me atraí para além da vida é esses fulgores de eternidade que a atravessam. Tenho sede da luz eterna da qual procedem esses fulgores efêmeros.
Na certeza da derrota, uma só esperança me resta: o Deus que me criou a sua imagem e semelhança me perdoará uma vez que em suas criaturas finitas nunca haja amado mais que a sua imagem infinita. Porque Te juro que jamais ei amado, que jamais ei buscado a ninguém mais que a Ti, que és a inocência infinita, a boca que não sabe dizer que não. As vezes posso ter modificado e confundido as distâncias e os planos, e ter afundado no barro ou me perdido nas nuvens, mas nesse barro só busquei o rasto de Teus passos e nessas nuvens a estrela de Tua luz. Se minha loucura traspassou os limites de Tuas leis é porque traduzia a impaciência de meu amor, e si desconheci os bens velados da terra foi por perseguir a inacessível pureza de Teus bens. É verdade que tive também meus ídolos, que me foram doces e próximos como o anoitecer e o leito do trabalhador fatigado: mas Tu estavas neles e atras deles, e minha adoração os há atravessado sempre para chegar a Alcançar-te. Castiga-me se queres, não tenho medo de Ti. Abre o deserto sobre meus passos e afasta de meus lábios todas as fontes: sempre minha sede de Ti me unirá a Ti.

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Fernando Rodrigues Batista

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Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot