quarta-feira, 26 de março de 2008

O fascinante poema de Ulisses

(DEDICADO AOS LOUCOS SUBLIMES)

Para os que assistem de longe a batalha daqueles que se propuseram a sustentar de pé, contra todos os agentes destruidores, o edifício da Nacionalidade, é difícil, ou quase impossível compreender as angústias de todas as horas, que consomem os nervos e apertam o coração dos combatentes de ânimo firme e inflexível desígnio.
A consciência profunda das realidades aparentes e daquelas outras que, por serem ocultas, mais se fazem sentir nos efeitos visíveis dos aspectos sociais, coordenou em cada um dos lutadores as forças anímicas que se compõem no lineamento de uma atividade constante cujo exercício premune o espírito, isentado-o das enfermidades do desânimo, da desilusão e do ceticismo.. E esse é , por certo, o segredo da resistência, a chave do enigma, para tantos indecifrável, do homem que, apesar de todos os motivos de descrença e de revolta, consegue sustentar-se ereto na sua irredutível determinação.
Tudo, no quadro geral de um país que veio perdendo, dia a dia, a noção de seus destinos superiores e da sua dignidade histórica, e no ambiente universal de predomínio de um grosseiro materialismo que pretender ser o contraste de um outro materialismo o qual, pelo menos, desfralda uma bandeira idealista, tudo convida à demissão, à renúncia, ao abandono mais completo.
O lutador, empenhado em salvar um povo que não se quer salvar, sente, mil vezes, a tentação de recolher-se à delícia do ostracismo, atravessando o rio Lethes, o rio do Esquecimento, e mergulhando naquelas zonas crepusculares onde os prazeres lícitos e honestos anestesiam as faculdades do pensar e do sentir, do compreender e do temer, amortecendo a vontade e as energias criadoras.
Nessas horas de tédio e de amargura, configuram-se no pensamento do homem engajado na batalha por um Ideal Superior, as doces tranqüilidade dos Jardins de Epícuro, onde toda a dor é proscrita, ou a nobre serenidade de Academus, onde pairam as idéias e as controvérsias, como aves a contemplar, muito do alto, as misérias da terra. Doçuras amáveis de Tusculum, à cuja sombra do arvoredo, Plínio o Moço escrevia as sua cartas literárias e o Panagírico de Trajano; amenidades das Bucólicas de Virgílio, sob a proteção de Octávio, quer era o Poder, e de Mecenas, que era o Dinheiro; paz amável das bibliotecas monásticas, de cujo silêncio podem sair as páginas clássicas de Frei Luís de Souza; doçuras de imperturbáveis academicismos, onde a prosa de Anátole France se desenrola em planícies de mínima altitude, como um tapete de cores esbatidas... Tentação da vida de gabinete, da vida alheia à vida, da vida harmoniosa da ilha da Perfeição, onde Calipso tenta prender o destino tumultuoso de Ulisses.
Mas, à semelhança do herói de Itaca, a despreender-se dos argumentos da deusa dos Parques Perfeitos, quando o incita a viver para sempre entre as aléas, de cujas árvores não caia uma única folha, e junto às fontes que não conheciam a mácula dos enxurros, deslizando perpetuamente cristalinas, e a ouvir o canto daqueles pássaros desconhecedores da morte, também os lutadores penetrados pelas razões das grandes causas jamais se demitem da empresa a que se abalançaram.
Como Ulisses, trazem no fundo do coração a lembrança de Penelope, a esposa fiel que está sempre a esperar naquele Reino das Contingências Humanas, onde as árvores envelhecem, as fontes se turvam e os pássaros sofrem os rigores da invernia. E, assim como Ulisses foge da lha da Perfeição, também o homem que se dispôs a lutar no sentido do "humano" e, particularmente, no sentido da Pátria, rejeita a vida calma, o tédio das aposentadorias, o "ócio com dignidade" dos romanos, onde o espírito ardente e lutador não encontra senão indignidade.
Voltar a Itaca, é o pensamento de Ulisses. Volver à realidade dura da vida nacional, é o pensamento secreto do Lutador, quando a tentação o instiga a abdicar o cetro da sua grandeza, que é o sonho expressivo do seu altruísmo e do seu amor à Pátria.
O desânimo nunca chega a ser um colapso das energias criadoras; é apenas um instante de vertigem, em que, à maneira do Anteu (o gigante que refazia suas forças ao tocar a terra, na plenitude dos combates) o lutador da Nobre Causa rápido se recompõe para, mais lesto e firme, arremeter contra as potências do Mal.
E, assim, coo depois de tantas aventuras e desventuras, Ulisses consegue regressar a Itaca e encontrar Penelope, a esposa, e Telemaco, o filho, também os que batalham pela Pátria haverão de encontrá-la, como encontrarão a alma da Pátria (a fiel Penelope) e a flor do seu futuro, na continuação do tempo, isto é, as novas gerações, que são o Telemaco de todos os Ulisses...
Não faltaram conselhos à rainha de Itaca para que esquecesse do esposo, em cuja possibilidade de regresso ninguém de bom senso, queria acreditar. Só ela acreditava. E ele regressou. Não faltarão, também, graves anciãos, que se dizem sabedores das realidades políticas, a dizer aos ouvidos da alma da Pátria, que já lhe não é lícito esperar por um ideal que tudo indica haver soçobrado nas encapeladas ondas de um Mediterrâneo histórico, entre as fúrias dos Ciclopes do materialismo, as artimanhas de Circe, que é toda a demagogia corrente em nossos dias, e o mistério do país dos mortos, onde tudo é frialdade e indiferença.
Mas assim como uma tempestade atira Ulisses à praia de Feacios, encontrando o acolhimento de Náusicas e Alcino, que o reconduzem a Itaca, disfarçado em mendigo, também a furiosa tormenta, que já se forma nos horizontes da nossa Pátria, há de levar os que lutam por ela à praia dos acontecimentos inevitáveis da História.
Disfarçado em mendigo, ou seja, em peregrino implorativo, Ulisses encontra vários pretendentes à mão de Penelope. Eles disputam, com ambição mesquinha do Poder, a rainha por todos tida como viúva. Mas Ulisses dá-se a conhecer, a Telemaco, e há nisto um símbolo impressionante a assinalar a vida dos heróis: eles se revelam à juventude.
Sim; os heróis revelam-se à Mocidade, porque os velhos perderam inteiramente a memória e embotaram (à força de raciocinar e de agir segundo as regras frias da razão) as poderosas antenas intuitivas. Os velhos perderam a capacidade divinatória, o Dom das percepções íntimas e profundas e só aqueles que, como o centenário Simeão do Evangelho, conservam a juventude do Espírito, são capazes de reconhecer o que os seus contemporâneos não vislumbram.
Os pretendentes à mão da Rainha de Itaca são todos interesseiros; não os move nenhum amor, mas apenas a ambição do mando e os proventos que deveriam do governo. Mas Telemaco, desde o instante em que reconheceu Ulisses, de quem deveria ser continuador, é quem revela a Penelope a identidade do herói.
Por este motivo todos os que lutam, entre incompreensões e injustiças, entre indiferenças e despresos, amargando o desdém com que são olhados por uns e sofrendo o ódio com que são visados por outros, sabem que Telemaco, ou a Juventude, está viva e já os identificou e será ela quem os revelará, na hora extrema, os ouvidos da Pátria que os espera.
Esta certeza revigora a fibra dos batalhadores por um ideal de grandeza humana e de salvação nacional. E, então, todas as mesquinhesas dos seus coevos lhe parecem mais mesquinhas, não constituindo, por isso mesmo, empecilho aos seus objetivos.
É verdadeiramente comovedor esse fato que presenciamos todos os dias de homens paupérrimos, sem eira nem beira, darem as horas do seu justo descanso a um trabalho do qual, longe de auferir proventos, sofrem ônus e duros sacrifícios. Homens pobres que pagam para trabalhar em favor de uma ordem que materialmente lhes não aproveita, enquanto os ricos se entregam as suas exigências confortáveis, muitas vezes negando às necessidades mais prementes do serviço patriótico desenvolvido pelos que tudo sacrificam a bem da Nacionalidade, a mínima contribuição.
No meio desse espetáculo em que Voltaire encontraria centenas de Pangloss, argumentando leibnitzcamente e vivendo segundo as normas de Epícuro, agitam-se os pretendentes de Penelop, os ambiciosos do Poder, os sedentos de posições dinheirosas e cargos honoríficos, os charlatães à Cagliostro, os demagogos cheirosos a Jacobinagens, os êmulos de Catilina, a fauna prodigiosa dos pescadores de águas turvas.
Mas, apesar de tudo, aumenta, cresce na hora presente, a legião dos idealistas, dos heróis, dos que se sacrificam, dos que se martirizam, dos que não conhecem descanso nesta luta tremenda pela salvação da nossa Pátria.
O gelo da indiferença de muitos não lhes arrefece o ardor do entusiasmo; a incompreensão de outros, não os desanima no afã, cada vez mais vibrante, de bem servir a Nação; o desprezo que tantos lhes votam é tomado com o mesmo íntimo sorriso com que Ulisses, disfarçado em mendigo às portas dos moradores de Itaca, considerava a incapacidade de interpretação do seus motejadores; as injustiças de muitíssimos ainda, revestindo-se da formas das calúnias, das injúrias, dos sofismas de uma crítica malévola e pérfida, são recebidas pelos batalhadores com a corajosa tranqüilidade dos que marcham por aquela selva escura de que fala Dante, na qual se encontram espinhos, precipícios e feras, que é forçoso superar.
Por isso, a luminosa minoria que empunhou a bandeira do espiritualismo mais puro e sincero, prossegue aguardando o momento trágico de um futuro, cujas ameaças a mediocridade geral dos responsáveis não tem sabido conjurar.
E a pátria há de reconhecer os que a amam, como Penelope reconheceu Ulisses, levado à sua presença por Telemaco, a juventude radiosa que não faltará ao seu magnífico destino.

O Homem contra a Criação

Luis de Sena Esteves


Homem e mulher são diferentes no corpo e na alma, na biologia, no sentir, no amar e no entender, mas são diferentes para serem um para o outro, e os dois, através das diferenças e relação mútua, para criação do filho, em que colaboram intimamente com Deus – eles, os pais, no corpo, em tudo o que o corpo traz à vida, no sentimento, no coração, quase na alma; Deus, na alma transcendente, nesse quase que está para além dos pais e os pais, por não serem divindade, não podem acabar. Os pais lhe dão a terra; Deus, o que está para além da terra, o destino transcendente dos seres espirituais.
Deus está presente já na própria concepção dando ao amor dos pais a oferta criadora duma nova alma. É nesta associação espantosa de Deus e do homem, não dada à criação em momento algum, que se tornam, homem e mulher, na regra fundamental do viver humano, à qual tudo deve estar subordinado.
A família supõe assim, por estes fatos fundamentais, a ordem criada. Deus colabora na ordem que criou e através dela. Não se sujeita a colaborar numa ordem criada pelo homem, sem Ele.
A complementaridade, e diferenciação dos sexos é assim o fato primário, a própria condição de existência na terra da obra suprema da divindade. Não admira que, num mundo em que se está a negar a diferenciação e complementaridade dos sexos, se substitua a graça da criação pela tragédia da destruição das fontes da vida e da própria vida, como sucede na anticoncepção e nas destruições maciças em que a humanidade, invocando um amor que não foi criado, se extingue de dia para dia... o que leva já alguns governos temerem, não o espectro neo-maltusiano da sobre população, mas o vácuo ainda mais pavoroso da extinção dos seus povos por falta de procriação.
A grande ameaça da humanidade de hoje não é o aumento da população que as máquinas calculam nos gabinetes do planejamento mundial, não são as bombas atômicas que ainda não conseguiram matar além de escassas centenas de milhares de vidas; espantosamente, segundo uma evidência em que o senso comum, (por se Ter completamente perdido, certamente) não acredita, é o aborto, que mata atualmente milhões e que já matou cerca de 50 milhões de homens nos últimos 20 anos. (P.S.: o presente artigo foi escrito em 1971)
Deus não colabora com o homem numa ordem criada contra uma ordem que Ele criou, e se a humanidade, que ainda não destruiu o instinto inicialmente dado, ainda cresce, não demorará extinguir-se pouco a pouco, em face da maior razia de vidas que nunca peste ou fome ou guerra lhe trouxe na história passada. Bom será que o presente século, hipnotizado pela doutrina econômica do neo-maltusianismo, ao menos, por um imperativo também econômico, considere urgentemente uma nova doutrina, anti maltusiana agora.
Começa por divergir a história atual, logo de início, da ordem criada, e também, na ordem criada, a sentir efeitos devastadores. Pode o homem tentar criar uma nova natureza, não pode livrar-se da vingança da natureza destruída. As leis que Deus criou, para todos evidentes, atuam sempre, ou criando, ou destruindo, por elas mesmas. E estas leis vingam-se implacavelmente, num determinismo cego a que o homem não pode fugir. É o preço da nova criação.

continuará....


Hora Presente, Ano III, Dezembro de 1971, n°11, p.176-177

quarta-feira, 19 de março de 2008

Tasso da Silveira e a poesia que conduz a Deus


"A mais séria, a mais heróica, a mais resistente das almas da geração que pertenço... uma das mais puras glórias do Brasil contemporâneo". Jackson de Figueiredo sobre Tasso da Silveira


"A poesia de Tasso é uma reação contra o vácuo aberto pelo pensamento. Precisava de um refúgio e buscou, na poesia, o caminho para Deus. A beleza iluminou-lhe o grande Mito cristão. O sentimento religioso, o pensamento católico, consolador por excelência, extinguiu todos os mistérios, todas as incógnitas e todas coisas insondáveis pelo Mistério Maior, pela Incógnita Maior e pela Coisa Insondável". Joaquim Ribeiro

"A missão da poesia de Tasso da Silveira – que se estende uniformemente de Fio d’água aos Cantos do campo de batalha - é essa de salvar o povo brasileiro, fazendo-o salvador dos homens da terra Todos os seus poemas, toda essa poesia escrita sem solenidade, encontra aqui sua única razão de ser. Tentar remissão para a humanidade, e, através da remissão conseguida, reintroduzir na terra a inocência perdida". Adonias Filho

*********


A DANÇA EM FACE DE DEUS*

1

Senhor, em presença de tua Face,
eu dançarei.
Porque toda alegria e toda beleza
é ritmo e dança.
E a alegria absoluta
e o absoluto esplendor
são uma dança eterna.
Senhor, em tua divina presença,
eu dançarei.
Dançarei como as frondes, como as flores,
às brisas matinais.
Dançarei como as ondas, como as nuvens,
como os ventos oceânicos,
à ebriez dos horizontes sem fim.
Dançarei como os mundos,
as sagradas estrelas,
à hipnose da grande noite.
Senhor, em presença de tua Face
dançarei, dançarei,
dançarei....
dançarei....


2

Cantarei as estrelas, Senhor,
perpetuamente cantarei!
Porque elas são e serão sempre
o augusto deslumbramento,
o milagre, a alegria.
Porque elas permancerão para sempre intactas,
inatingíveis aos golpes
do nosso ímpeto de negação e destruição.
Porque elas são tua imagem,
teu símbolo na matéria.
Quando o homem houver despido
do seu manto de encantamento e de beleza
todas as mais esplêndidas realidades
deste mundo,
Quando houver desnudado de sentido
as árvores, os passários, as flores,
as montanhas, o mar, os ventos,
ainda as estrelas guardarão
seu perene fascínio,
seu magnetismo sobrenatural.
Quando em mais nada neste mundo
descobrir o homem vestígios
dDo absoluto do teu Ser,
- ainda as estrelas lhe dirão,
na sua pulsação infinita
e nos seus insondáveis abismos,
que tu existes, Senhor,
e és absoluto e eterno.
Até meu último canto
cantarei as estrelas.
Dos meus poemas humildes
nem todos se apagarão
na lembrança dos homens.
E nos poucos que fiquem
ainda estarei cantando
a estrelas eternas.
Senhor, até o fim de tudo
cantarei as estrelas,
perpetuamente as cantarei...

3
Senhor, esta água
clara e humilde que bebo
para matar a sede,
transubstancia esta água no teu sangue!
Senhor, este ar
que aspiro sôfrego
Porque meus pulmões sufocam,
Transubstancia este ar na tua alma!
Senhor, as cores e as formas,
as linhas puras de beleza
de todas as coisa do mundo
e que meu olhar procura ansiadamente,
e as harmonias, as músicas,
que são a água para a sede meus ouvidos,
transubstancia tudo isto no teu corpo,
como fazes com o pão e o vinho.
Torna eucarístico
tudo o que está em permanente contacto
com meu corpo eminha alma,
afim de que em tudo eu te sorva
e de ti me nutra
e me encha de ti a cada instante
Porque, senão, eu apodrecerei de todo.
Porque, senão, eu me desfarei em poeira,
Em poeira tão tênue
Que nem teus dedos sentirão...

4
Senhor, dá-me paisagens
infinitamente puras.
Dá-me paisagens virginais
sobre as quais meu espírito corra como um vento
que nunca tenha roçado as paludes trágicas,
nem nunca se tenha embebido do perfume
das mancenilhas mortais.
Senhor, dá-me paisagens unicamente feiras
- como as do deserto enorme, -
de areias e estrelas.

5
Meu corpo como as areais
que as águas primordiais
- as grandes águas virginais do mundo –
lavaram.
Meu corpo como as areias puras.
Minha alma como as estrelas
distantes na noite,
límpidas.
Minha alma como as estrelas intactas.
Então virás, Senhor,
porque serei como um espelho
nítido,
em que poderá refletir-se
Tua Face...


6
Criar, modelar, construir
até o Fim.
capturar as imagens
de nítidosrecortes,
ágeis e vivas
como os tigres elásticos,
e as corças tímidas...
Criar pensamentos
que desejam como serenos pássaros,
do mar,
ou como os livres ventos oceânicos.
Porque só eles trazem nas asas
o vasto e puro alento
das distâncias eternas.
Não vazar nunca
no molde frágil
dos apodrecentes desejos,
do tédio ignóbil,
das cobardias inomináveis.
Modelas apenas
as sagradas argilas
que as mãos de Deus amassaram,
porque só delas é que nascem
As formas imperecíveis.
Criar apenas ritmos límpidos e puros.
Cantar somente os cantos matinais
claros e nus...

9
A Lua
(tão essencial,
tão de Deus...)
do céu puro alumia
a paisagem desnuda:
a paisagem de árvores desfolhadas
erguendo braços quase humanos
na solidão vazia:
de árvores tão simples e nuas,
tão essenciais,
tão de Deus!
Senhor, bem sei que este quadro
é uma palavra tua...
Que por ele me chamas
em verbo de beleza
para uma simplicidade mais límpida,
para uma renúncia mais heróica,
para um desnudamento mais total...
11
Chopin, nós ficaremos sozinhos!
Quando todos os homens
forem, por fim, ajustados
como peças inertes
à grande máquina terrível,
nós, e os nossos irmãos dolorosos,
ficaremos sozinhos.
Quando todos os homens
se houverem perdido de todo
do seu sentido de eternidade
e da sua vocação de beleza,
nós ficaremos
infinitamente sozinhos!
Mas ainda assim continuarão perpetuamente
a comunicar-se conosco
as profundidades de tudo.
Ainda assim continuaremos
a comungar com as essências,
a ouvir as vozes do chão e das estrelas,
a receber as mensagens
das coisas e dos mundos.
Ainda assim,
do seio de uma solidão infinita,
prosseguiremos
em nossa confidência comovida
com Deus...

13
Falar com Deus perdidamente,
na oração que nem sabe que é oração,
no misericordioso encontro eucarístico,
na hora da dor incoercível, em que nada mais me alivia
[no mundo,
na hora da ansiedade infinita, em que nada mais enche
[a minha alma no mundo,
na hora da serena, ou da profunda alegria,
em que está mais próxima a compreensão gloriosa
do absoluto e do eterno.
Criar sonho perpetuamente,
desentranhar perpetuamente a beleza
da substância de todas as coisas.
Procurar a inocência.
No mais secreto desvão de todas as almas
procurar incessantemente a inocência.
Andar, andar, sem parar,
perpetuamente descobrir
a inocência e a beleza.
Falar perdidamente com Deus...


15
O sopro criador não soprou apenas nas origens.
Perpetuamente continuou.
Os homens é que se petrificaram.
Fizeram-se inertes como os rochedos
sobre os quais passa inutilmente
o grande vento da infinita solidão.
O sopro criador era talvez mais tênue nas origens.
Depois cresceu, se amplificou.
Se os homens não tivessem descido todas as flâmulas
da alta torre do Espírito,
elas a esta hora tremulariam violentamente
ao vendaval do Criador.

*O Poema selecionado pertence à obra Contemplação do Eterno, e foi estraido do livro "Tasso da Silveira: poemas" da Editora GRD, com organização e seleção de Ildásio Tavares.

domingo, 16 de março de 2008

Com a Usura

Ezra Pound

Com a usura nenhum homem tem casa de pedra firme

de blocos bem talhadose bem lisos

para o desenho os recobrir na face,

com a usura

nenhum homem tem um paraíso pintado na sua igreja

harpes et luthes

nem sítio onde a Virgem receba a anunciação

e onde um feixe de luz jorre da ferida,

com a usura

nenhum homem vê Gonzaga os seus herdeiros e as suas concubinas

nenhum quadro é pintado para durar

ou viver com ele

é pintado mas é para vender,

para vender depressa

com a usura, pecado contra a natureza,

o teu pão é feito cada vez com piores farrapos

o teu pão é seco como o papel,

sem trigo da montanha, sem boa farinha

com a usura o traço torna-se grosseiro

com a usura não há fronteiras

e nenhum homem pode achar um lugar para a sua casa.

0 pedreiro fica longe da sua pedra o tecelão longe do seu ofício.

COM A USURA

a lã não chega aos mercados

os carneiros não ganham lã com a usura

A usura é uma peste, a usura torna romba a agulha nas mãos da virgem

e embaraça os gestos da fiadeira.

Pietro Lombardo não veio pelo caminho da usura.

Duccio não veio pela usura

Nem Pier della Francesca; Zuan Bellin` também não foi pela usura

nem foi com ela que pintaram «La Calumnia».

Não foi pela usura que veio Angelico; nem Ambrogio Praedis,

Nem veio a igreja talhada em pedra assinada: Adamo me fecit.

Não veio pela usura Santa Trófima

Não veio pela usura Santo Hilário,

A usura corrói o cinzel

Ela corrói a arte e o artesão

Ela enrodilha o fio no ofício

Ninguém aprende a bordar a ouro seguindo o modelo dela;

0 azul tem um cancro por causa da usura; o carmesim fica por bordar

A esmeralda não encontra Memling

A usura mata a criança ainda no ventre

Ela corta a carreira aos jovens

Ela leva à cama a paralisia, ela está deitada entre a jovem desposada e o seu esposo.

CONTRA NATURA

Levaram prostitutas a Eleusis

Ao banquete assentam-se cadáveres

A convite da usura.

terça-feira, 4 de março de 2008

A comovente e heróica morte de um mártir. Como se deu o assassinato de Ramiro de Maeztu, em 7 de Novembro de 1936.

por María de Maeztu


Ramiro de Maeztu, mestre de Hispanidade, foi assassinado no infausto novembro de 1936. Sua irmã Maria recorre a seus pensamentos e sentimentos. Dom Ramiro morreu para que prevalecesse, em toda a plenitude, o sentido hispânico da vida, alcançado por ele ao termo de suas andanças intelectuais e daí por diante objeto de uma doutrinação constante e corajosa. Conhecia, e por experiência, a maldade dos homens, mas acreditava na possibilidade de fazê-los bons. RAMIRO DE MAEZTU: PRESENTE!


"Naquele instante dramático vejo com claridade, apesar de minha angústia que me confinava no silêncio, que ele já havia terminado de recorrer seu caminho de Damasco e que eu começava o meu, o caminho que sem ele haveria de recorrer infinitamente sozinha.. Até agora seu nome, o prestígio de sua rubrica, sua autoridade moral, me abriam todas as portas; por isso foi minha vida tão fácil. A hora da dor há chegado. A hora de afrontar sozinha, cara a cara, sem defesa e sem apoio, essa coisa terrível e magnifica que se chama verdade."A través das grades da prisão, nesse dia memorável, o homem que foi meu irmão, meu amigo, meu mestre, o companheiro no trabalho, o inspirador da emoção criadora, me entrega uma mensagem. Não vem escrito em palavras, mas está em seu olhar, na entonação de sua voz. É seu mandato que tem a força inalterável do que pede em silêncio na hora da morte.7 de Novembre de 1936._ Madri."No pátio da prisão os presos escutam os nomes que um miliciano pronuncia. Vão destacando-se os chamados. Um passo adiante e um ultimo olhar aos companheiros de cativeiro, aos que compartiram a angústia da espera do momento final."Então o carcereiro pronuncia seu nome. Queria pronuncia-lo, tentou, como se fosse um entre tantos. No entanto, sua voz, ao ressoar no âmbito da prisão, adquiriu alento de eternidade. O nome que pronuncia é já um nome histórico. Disse: Ramiro de Maeztu. Quis acrescentar um número, com que vai marcado - o sinal de ignominia - todo presidiário. Mas uma força sobrehumana deteve sua voz e o nome sai solitário, limpo, claro. É o nome que centenas de milhares de vezes reproduziram as colunas dos diários, dos melhores diários da Europa e da América, ao pé de um artículo de prosa perfeita no qual se enunciava uma verdade, uma inquietude, um anelo, uma profecia. É o nome de um homem que por manter-se sem medo e sem mácula, como o dos cavaleiros medievais, arriscou tudo e no momento decisivo foi visto, como a Verdade que defendeu, sozinho, definitivamente sozinho, abandonado. O nome de quantos hão de morrer se escuta no cárcere com idêntica emoção. Mas se agrega agora, neste caso, uma aureola de popularidade. É um nome conhecido por todos e até a Morte o conhece, pois falou e escreveu muito sobre ela: "todos os dias peço a Deus que me de alento para morrer com dignidade".

"Em 7 de Novembro de 1936, no pátio do cárcere de Madri, Ramiro de Maeztu, ao ser chamado, cravou seus joelhos na terra ante outro cativo. Era um sacerdote. Aproximou ele sua cabeça para fazer-lhe entrega de sua ultima confissão. O sacerdote, ante a gravidade da instancia, vendo que tinha a seus pés não um homem qualquer senão a um mártir que ha traspassado a fronteira do humano para ingressar na região onde moram os santos, fez um gesto com a mão indicando que seus pecados estavam perdoados porque amou muito e sofreu muito. Mas Ramiro, fiel ao rito da religião por cuja defesa dava sua vida, disse em voz clara e serena; "Padre, absolva-me...".

"E a gravidade dramática daquela hora, que os séculos cobrirão de glória e beleza, se tornou luminosa. Em seus olhos azuis, claros, profundos; naqueles olhos que haviam absorvido com deleite, nos anos de juventude, a beleza da vida; naqueles olhos através dos quais um dia cruzou a visão antecipada, certeira, segura, do que haveria de ser Espanha, brilhou como nunca uma labareda de fé. Lhe saltava o coração do peito, impaciente como o da criancinha quando tardam lhe conceder o que deseja. Teresa de Jesus, a Santa de Ávila, risonha, jovial, animosa, ia dando-lhe forças. E enquanto cruzava, de cabeça erguida e sereno, o corredor do cárcere, ia repetindo as imortais estrofes:

E tão alta vida espero

Que morro porque não morro.

"Apressou o passo, subiu na camioneta. A luz branca e fria do amanhecer de Madri iluminou como um refletor seu rosto antecipando a palidez da morte. Sua cabeça, sobre a luz tênue, levemente azulada, daquela aurora, não era já a cabeça de um homem de carne e osso: era a figura belíssima de uma escultura talhada por um escultor castelhano, para que possa ser elevada algum dia ao altar do templo onde mora Deus. Quem sabe? Talvez, ao altar do templo de São Miguel, em Vitoria, onde recebeu na pia batismal a água que desde vinte séculos limpa o homem do pecado original e lhe faz protagonista do drama de uma paixão _ padecimento perene _ que viverá com terrível angústia".

"Depois...o caminho, a parada, a curva final. Os milicianos que vão disparar contra ele se detém para acomodar com certeza o canhão que vai disparar a metralhadora. Lhe ordenam que avance contra um muro que dentro de alguns instantes quedará salpicado de sangue, do sangue de um homem que foi o que quis ser: um cavaleiro cristão. Já estão ali, nesse lugar para dar morte a um réu cujo único delito foi de haver amado infinitamente a seu Deus e a sua pátria, frente a frente, como nas horas mais gloriosa de Espanha, duas idéias, duas místicas, dois símbolos, duas manifestações de espírito a cujo enlace não se chegará nunca, nunca, porque entre eles não cabe harmonia possível. Uma é a idéia de afirmação e de amor cujo sentido consiste em elevar o homem. A outra é de negação que se propõem anular-lhe: é desumana".


"O instante final se aproxima. Dentro de alguns segundos a voz daquele homem - uma voz harmoniosa e varonil, grave e serena, terna e repousada, uma voz que adquiria maravilhoso acento patético, quando falava da dor e da morte, as duas grandes protagonistas da história - se apagará para sempre. No entanto, tem que dizer uma verdade, a última verdade, com que vai expressar na hora da morte o sentido da vida: "Vós não sabeis por que me matais! Eu sei por que morro: para que vossos filhos sejam melhores do que vós".

A luz do amanhecer detém seu curso e parece que, novamente, como na hora do Gólgota, descendem as sombras da noite. Estas sombras impedem ver a queda de seu corpo sobre a terra e permite supor que a alma iluminada pela fé teve um trânsito. E como não se conseguiu averiguar qual pedaço de terra serviu de leito a seus restos mortais, podemos afirmar que a Espanha inteira lhe serviu de sepulcro".

"A morte de um mártir é a verdadeira morte, porque conduz o homem a fronteira da vida na mais terrível solidão. Sozinho, abandonado, sem Ter uma mão amiga que fechasse seus olhos e cobrisse de flores seu corpo. Por ter sido morto na hora do triunfo, junto a seu cadáver, como antes junto de sua palavra, teria ido Espanha inteira: a Espanha que pensa e que sabe onde está sua salvação. Nesse amanhecer de 7 de Novembro de 1936 está sozinho, e para o cumulo da traição, seus verdugos se empenharam em negar sua morte. Só se sabe que desapareceu de sua cela no cárcere de Madri. "Onde está Maeztu?, perguntam as chancelarias da Europa e América. Onde está?, perguntam em Londres, as mulheres que lhe admirarão e escutarão sua palavra com deleite. Onde está Ramiro?, pergunta sua mãe, sua mulher, seu filho. Onde está o mestre?, perguntam os discípulos que foi deixando em sua passagem por este mundo. Onde está?, pergunta desde Buenos Aires seu grande amigo Ricardo Rojas, e desde Chile um de seus mais fiéis admiradores, Mario Garcés. Onde está o homem, o apóstolo, o profeta, o precursor?, pergunto eu. Que foi feito dele? Como e por que houve uma voz, uma só voz em Espanha que se levantara em sua defesa? Que fizeram os intelectuais, seus amigos da juventude, seus companheiros de trabalho, que não pronunciaram uma só palavra para salvar a vida um homem bom? E quando a imprecação surge terrível, desesperada, ouço uma voz clara que, em nome de Deus, contesta: Não, Ramiro de Maeztu não morreu porque ingressou no reino da imortalidade"·


Fernando Rodrigues Batista

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Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot