Carlos Nougué
Antes de prosseguir com o tema do pecado original (essencial para o entendimento correto do estado atual do homem e de sua ordenação segundo a economia da salvação), é preciso tratar, ainda que muito brevemente, do maritainismo, essa espécie de enfermidade que atingiu o tomismo e cujas seqüelas resistem a desaparecer. Expoente do movimento neotomista, o francês Jacques Maritain introduziu profunda e daninhamente no pensamento católico concepções de pessoa humana e de natureza totalmente equivocadas. Até um pensador como Gustavo Corção só no fim da vida, mais precisamente após o belo Dois Amores, Duas Cidades, atinou para os malefícios causados pelo maritainismo, e mesmo assim, como muitos tomistas, ainda acreditava num Maritain duplo: um tomista perfeitamente ortodoxo, e um tomista desvirtuado, como numa espécie de esquizofrenia intelectual. Isto é verdadeiro, mas só em parte, porque como demonstrou cabalmente o Pe. Julio Meinvielle (em De Lamennais a Maritain e Crítica a la concepción de Maritain sobre la persona humana) as referidas concepções já estavam presentes desde o início na obra de Maritain, ao menos em germe. Já estão plenamente desenvolvidas em Três Reformadores, embora ainda não causem todos os seus efeitos, como farão, mais tarde, em obras como Humanismo Integral. É bem verdade que de tais concepções partilhou o grande Pe. Garrigou-Lagrange, o qual, porém, logo renunciou a elas, enquanto Maritain as elevaria à máxima potência.
Resumamo-las aqui (já que logo as retomaremos bem mais extensamente): enquanto indivíduo, ou seja, enquanto membro de uma espécie, o homem está sujeito ao Estado e à Igreja, mas, enquanto pessoa, tem relação direta com Deus e sua intimidade (o que decorre, como veremos em outro artigo, de conferir ao homem atributos semi-angélicos). Ora, o corolário disso é preciso: reduzir a um mínimo a importância e o papel do Estado e da Igreja, e elevar a um máximo a liberdade de consciência individual, cuja santidade já não requererá, necessariamente, os meios que, todavia, como sempre disse o Magistério, só a Igreja (por instituição divina) pode ministrar em ordem à salvação de cada homem e ao fim último da multidão (“o fim da multidão não pode ser senão o mesmo fim de cada indivíduo que a compõe”, dizia Santo Tomás). Na verdade, tal visão não se distingue, fundamentalmente, das teses de um Marc Sangnier senão pelo fato de se reivindicar do tomismo, ainda que ao preço das maiores piruetas lógicas (Maritain era de fato um grande lógico, mas, como nem tudo o que é lógico é verdadeiro...). Com efeito, ela tem muito não só de liberal, como de comunista...
Mas importa dizer aqui que de tal visão decorre um entendimento completamente equivocado das artes e ciências. Sim, porque, se como natureza pessoal (quase angélica, como disse) o homem está em relação direta com Aquele que é propriamente a Supernatura e autor de todas as naturezas, então todas as nossas artes e ciências já estariam preordenadas a Deus pelo mero fato de ser humanamente naturais. Logo, uma obra de arte pode ser considerada boa e ordenada a Deus pelo simples fato de o artista tê-la feita segundo regras perfeitamente naturais. Como o tentará demonstrar erudita e “tomisticamente” Maritain em Art et Scolastique, mesmo poemas como Les fleurs du mal, de Baudelaire, seriam obras de arte boas, tendentes naturalmente a Deus e de seu agrado, pelo simples fato de serem “artisticamente” bem-feitas, e independentemente de se ordenarem, em verdade, a Satã... Absolutamente falso.
Nada pode deixar de ordenar-se a Deus não enquanto é humanamente natural, mas enquanto tem de tender a Ele ou intencional e formalmente, ou pelo menos de modo não-contraditório – sempre como meio, como fim intermediário ordenado, mais ou menos diretamente, à Causa Final. Tudo isso, estou certo, se provará exaustivamente ao longo das séries escritas para este blog e nos demais trabalhos que tantas vezes já anunciei. Mas, por ora, fiquemos com uma voz da verdadeira autoridade: Pio XII. Lembremo-nos do artigo “Querem um esporte reto e honrado? Cumpram os mandamentos”: nele se viu o Papa exigir do próprio esporte, tão inferior à mesma arte, que se transformasse numa “quase ascese de virtudes humanas e cristãs” e se ordenasse, indubitavelmente, ao fim último do homem, a Deus: o esporte, assim como [atenção!] “toda e qualquer forma de atividade humana”, deve “aproximar o homem de Deus”. “Deve-se rejeitar, pelo contrário”, dizia ainda o Papa, “tudo quanto não conduz a tais fins [ou seja, o último e os intermediários], ou se afasta deles, ou sai do lugar que lhes é [devidamente] atribuído [na justa hierarquia dos fins]” (Esporte e Ginástica), exatamente, aliás, como no caso da música e da arte em geral.
Em tempo 1: Vejam o que, tão contrariamente a Maritain, diz o Pe. Meinvielle: “a produção econômica ordena-se ao consumo; o consumo ordena-se à vida material do homem; a sua vida material, à sua vida espiritual; e esta, a Deus. Todas as coisas devem ser à medida do homem, e o homem [inteiro, acrescento] à medida de Deus” (em Concepción católica de la economia, 1936). É esta a base para tudo quanto venhamos a escrever aqui e alhures.
Em tempo 2: Há algo que temos repetido insistentemente: a obra de arte que, embora conservando aspectos belos, não se ordene de algum modo ao fim último do homem é não só má em termos finalísticos, mas tem obrigatoriamente mescla de mais ou menos fealdade. Já veremos por quê.Em tempo 3: E terminemos, por hoje, com estas santas palavras: “Os prazeres do ouvido me haviam enredado e subjugado com particular tenacidade, mas Vós me desembaraçastes e livrastes” (Santo Agostinho, Confissões, X 33, 49).
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