Fernando Rodrigues Batista
POSTIVISMO JURÍDICO E A TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN
Como leciona Juan Vallet de Goytisolo1, a esfera do direito vive imersa entre as do amor e da força e/ou poder, e, mais ainda, não pode desenvolver-se sem a colaboração destas duas. Acrescenta ainda, o egrégio professor que, se numa sociedade dominasse a força, o direito seria impossível, porém, se faltasse o poder e não o suprisse o amor, o direito não poderia realizar-se, pois sem suficiente poder para impor coativamente o justo aos que o não respeitam, normalmente cai-se na desordem e na anarquia.
Paul Roubier2, antigo decano da Faculdade de Direito de Lyon, fez notar (para os criticar) que este fato deu margem a que certos juristas tenham considerado que a norma jurídica é criação do Estado; pois, parecendo ausente o direito onde a força política não o sanciona, facilmente se pensa que não existe senão pelo Estado, concluindo-se de tal sorte que, a não existir este, seria inconcebível o direito.
Mas esta teoria – continua Roubier – não acaba, afinal de contas, por conduzir à negação da própria justiça? Porque se o direito é uma pura criação do Estado, daí não há de se seguir, como diziam os sofistas da antiga Grécia, que não é senão o que agrada ao mais forte? Se assim o for, nesse ponto teria que se dar razão a concepção marxista do direito como expressão da vontade da classe dominante, da que detém as alavancas do poder.
O direito na versão positivista, não passa do conjunto das normas emanadas do poder público, daí se segue que o Estado cria o seu próprio direito e impõe à sociedade a ordem jurídica em que esta deve enquadrar-se. Ordem tida sempre como legitima e válida, em quaisquer condições, uma vez observadas as formalidades estabelecidas pela mesma autoridade estatal. Logo, todo Estado será Estado de direito.
Que tais conseqüências são inevitáveis, lembra José Pedro Galvão de Souza, nas perspectivas do positivismo jurídico, confessou-o um dos mais prestigiosos filósofos do direito do século que recém se findara, positivista a princípio, mas que, retratando-se lealmente, acabou por proclamar a necessidade do direito natural para dar ao direito um fundamento objetivo e para justificar o Estado de Direito.
Trata-se de Gustav Radbruch, o festejado professor da Universidade de Heidelberg, que pondera que o problema, de longa data, costuma exprimir-se na conhecida pergunta: “é o direito anterior ao Estado, ou o Estado anterior ao direito3”.
Tal indagação coloca-se em face de duas concepções que granjearam, entre os juristas de sua pátria, um grande número de adeptos: a de Jellinek, eminente teórico do Estado que foi professor na mesma Universidade de Heidelberg, ensinando a autolimitação do Estado pelo Direito; e a de Hans kelsen, chefe da escola vienense, com a “teoria pura do direito”, estabelecendo uma identificação entre a norma jurídica e a ordem estatal”.
Kelsen visa romper com a antinomia entre Estado e Direito, libertar-se daquela auternativa referente à anterioridade de um dos dois termos, e assim encontrar uma saída à qual ele efetivamente conduz, mediante rigorosa sistematização lógica, mas no plano de um abstracionismo obviamente apartado das realidade4.
Por isso responde kelsen5: “O poder político é a eficácia de uma ordem coativa que se reconhece como direito. É incorreto descrever o Estado como "um poder por trás do direito", pois, esta frase sugere a existência de duas entidades separadas onde só existe uma, a saber, a ordem jurídica. O dualismo Estado e direito é uma duplicação supérflua dos objetos de nosso conhecimento e resulta da tendência a personificar e hipostasiar nossas personificações”.
Aceita a teoriza preconizada por Kelsen, acerca da identidade do direito e do Estado, todo e qualquer Estado é um Estado de direito, seja qual for a ordem jurídica estabelecida. Haverá um Estado de direito liberal, um Estado de direito social-democrático, um Estado de direito nazista e um Estado de direito Comunista.
Quanto à solução proposta por Jellinek, para subordinar o poder à ordem jurídica, dentro das categorias do positivismo, ela induz as mesmas conseqüências. Com efeito, se o Estado se limita pelo direito que ele próprio criou e pode, a qualquer momento, alterar por uma decisão do poder constituinte, ou mesmo do poder constituído, neste caso o direito é que depende do Estado e não o Estado do direito.
Voltando à Kelsen, se este Estado, de cuja própria vontade brota por si mesmo o direito vigente – esse Estado que converte tudo em direito da mesma forma pela qual o rei Midad convertia em ouro o que suas mãos tocavam - , tem sujeita sua autojustificação no vértice de sua pirâmide jurídica, onde Kelsen situa a normal fundamental, que – como, seguindo Kulischer, advertia Roubier – não é senão o resultado da ultima revolução que triunfou, transformada esta já num novo Estado de direito com o qual se identifica.
Segundo Juan Vallet de Goytisolo6 A justificação do poder e do seu exercício subsume-se, então, nas normas estabelecidas, na constituição elaborada pelo próprio Estado. Embora, certamente, outros Estados, por sua vez, assim como a opinião internacional, a julguem segundo o seu respectivo conceito de Estado de direito. E isso só depende, assim, da ideologia que se imponha e alcance o poder do Estado, ou que domine a opinião pública, sempre que possível, através dos mass media ou da que inspire a força que, por métodos subversivos, fundamentalmente psico-sociológicos, logre mobilizar as massas. Em suma, é o conceito imposto pela ideologia que prevalece no grupo dominante ou na maioria do povo, infundida nesta por aquele ou elevada por esta ao poder por meio de seus representantes. Representantes que geralmente são os mesmos que lograram infiltrá-la diante dessa maioria, no momento oportuno e segundo a direção do vento dominante.
Poderia dizer-se quem a “Idéia de Justiça” em cada Estado, tido por de direito, se identifica com a realidade que impõe a cada momento o Estado até alcançar sua plenitude ideal.
Goytisolo mais uma vez preleciona que considerou-se que o moderno Estado de direito era uma das conquistas das idéias que triunfaram na Revolução Francesa, porém, não se tardou a perceber que novas revoluções e subversões podiam perturbá-lo, chegando-se até a admitir-se que a ordem jurídica de um Estado de direito só pode imperar pacificamente nos períodos intermédios entre duas revoluções.
Entretanto, para que se altere seu conteúdo jurídico, não é ncessário que sofra revoluções o Estado de direito fundado numa concepção imanente – seja fruto da razão, de uns poucos ou da maioria, seja da opinião pública, seja da vontade soberana de um ditador, de um partido ou da massa – pois sem variar sua forma se altera seu conteúdo, que se transforma através do que foi chamado “la révolution silencieuse” inclusive substancialmente, quanto aos direitos considerados fundamentais, desde a propriedade até à própria vida, diga-o a autorização do aborto e amanha quiçá da eutanásia.
1 Panorama del derecho civil, tomo primeiro, 2 edição, Barcelona, Bosch Casa Editorial, 1973, pág. 7 e seg.
2 Théorie générale du droit, 2 ed, Paris, Sirey, 1951, pág. 51 e seguintes.
3 RADBRUCH, Gustav. Folosofia do direito, 4 edição, trad. Portuguesa de L. Cabral de Moncada, Arménio Amado Editor, Coimbra,1961, vol. II, pág. 125.
4 GALVÃO DE SOUZA, José Pedro, O Estado de Direito e o Direito Natural, Hora Presente, São Paulo, p. 29.
5 KELSEN, H. Teoría General del derecho y el Estado, II, I, A, c; cfr. ed. en castellano, México, UNAM. 1979, pp. 226 y ss.
6 Estado de Direito, Totalitarismo e Tecnocracia, Hora Presente, São Paulo, pág. 111.
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