quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Canalhas sem batina: O progressismo católico e os padres canalhas...

Fernando Rodrigues Batista


De uma feita tive desgostosa conversa com um desses padres revolucionários, um padre pra frente, desses que não usam batina. Não usava batina e ostentava uma enorme barriga. Sim, era bem gordo e suava muito. Entre um gole e outro de café disparei: "comunismo é pecado. É ateu. Contra a doutrina da Igreja...".
O padre gordo e sem batina avermelhou-se – não é mera coincidência – como se eu proferisse uma grande blasfêmia, levantou-se da mesa e soltou aos gritos: "O comunismo não é tão ruim. Você anda lendo livros errados". Não voltei a lhe falar. Segui assistindo suas missas chatas com suas homilias horríveis. Confesso que tinha a sensação de estar em uma reunião sindical.
Devo salientar para espanto de alguns, que o padre gordo, sem batina, que tinha uma homilia horrível, aceitava de bom grado as insinuações das velhas rezadeiras que na falta do que fazer se reuniam na Igreja todos os dias para sei lá o que. Não obstante ele seja também um grande canalha, não é sobre este tal padre que eu queria falar. Mas quero falar de um assunto que segue a mesma tônica, ou seja, quero falar dos padres canalhas. A ordem do dia era a questão social. Pecado, inferno, nem pensar, certamente – na mente do padre pra frente – trata-se de coisas ultrapassadas, irrelevantes, não condizentes com a "lógica" do Concílio, como dizia o progressista Cardel Suenens de quem doravante falaremos.
Ah, se Gustavo Corção estivesse vivo!
Me acode à memória um jovem amigo, revoltado, era bem jovem, 20 anos. Explico-me. Este amigo faria uma viagem e queria a qualquer custo se confessar. Talvez um leitor desavisado poderia perguntar: - Existe isso ainda? -. Bom, seguindo: meu jovem amigo seguiu até a Paróquia local. Tomou um susto. O padre, este também sem batina, porém menos gordo – na minha opinião daria um ótimo narrador de futebol - bravejou: "Só com hora marcada". A alma agora depende de hora marcada: chegamos ao ápice da defecção da fé e da Igreja.
Como imprescindivelmente haveria de viajar naquele mesmo dia, tomou um ônibus em direção à Catedral. Na frente, uma placa enorme estampava: "Atendimento das 14:00 ás 18:00 hs". Entra, ouve barulhos de máquina de escrever. Bate na porta. Nada. Talvez tivesse imaginado: "o que devem estar redigindo? Um Manifesto? Uma homenagem à Marx? À Guevara?". Tudo é possível. Sai desconsolado no sol de rachar catedrais. Novamente e propositalmente uso uma expressão do Nelson Rodrigues. Não importa. O fato é que não o atenderam.
Ah! Em outra oportunidade - me relatou o jovem amigo – em sua peregrinação quase quixotesca, entrou sem bater e não se surpreendeu ao encontrar o padre, também sem batina - esse usava cadeira de rodas - deleitando-se com a leitura de um grande canalha, uma cafajeste, um pulha. Refiro-me ao Boff claro. O Leonardo Boff, idolatrado, chupado sem titubeios, por cem entre cem desses padres da Igreja Nova. Voltando. Meu amigo resolve ligar para duas ou três paróquias, salvo engano é isso. Nada. Simplesmente nada. Ninguém disponível.
Faltam padres disse uma secretária. Fico imaginado Bernanos em uma situação dessas. Queria apreciar ele se manifestar à respeito. Fui assaltado de uma cólera terrível. Esse assunto ficou em minha cabeça. Entre uma leitura e outra ficava comigo: "E se ele morresse?". "É, eles deveriam ir para o inferno". Sentia inevitável vontade de esfregar em suas caras a Pascendi Dominici Gregis. Não sei se eles a conhecem, mas senti vontade de esfregar na cara deles.
E o leitor atordoado conhece? Imaginem, outra situação.
Um desses demônios encarnados como com acuidade salientava Santa Catarina de Sena, foi solicitado por uma filha aflita que tinha a mãe muito enferma que esperava um ato caridade do padre, esperava que este lhe concedesse o sacramento da unção dos enfermos. O canalha simplesmente disse: "Hoje não posso. É meu dia de folga". Canalha, pulha, demônio encarnado. Existem ainda padres ou só canalhas? O Nelson Rodrigues dizia que achava lindo quando ainda menino as crianças atravessavam a rua para beijar a mão do padre, do padre de batina, do padre que juntava as mãos e rezava.
Hoje não se beija a mão do padre, e o padre – falo aqui dos padres pra frente, padre de passeata - não usa batina e tampouco reza.
Peço vênia para relembrar o que disse Santo Pio X, de venerável memória: "Os fabricantes dos erros, ocultam-se no seio e no próprio grêmio da Igreja... se apresentam como restauradores da igreja e em falange perigosa atacam com audácia o que há de mais sagrado na obra de Jesus Cristo". Perfeito. Pio X condenou o modernismo no Decreto Lamentabili Sane Exitu, e na citada encíclica Pascendi Dominici Gregis. Ninguém conhece esses documentos. Estão jogados ao relento assim com as almas de todos católicos sinceros.
Entrementes, toda inovação é aceita de bom grado pelos fiéis desatentos, que lhes são impingidas a gosto e contra-gosto pelos progressistas. As mais soezes mentiras, àquelas que fazem rinchar as constelações, consoante a expressão do insaciável Leon Bloy - este sim católico de verdade – tem a potência de derrubar dogmas. Para melhor ilustrar, recorda o saudoso pensador belga Marcel de Corte uma triste situação onde um padre ainda moço, que em sua homilia teve a audácia de pronunciar: "Maria sacrificou sua virgindade para dar a luz ao Salvador do Mundo".
Como não se indignar com estes patifes anunciadores do nada? E as coisas do espírito? E a tradição? Estudar Che Guevara, Marx é mais importante? A Fome. A barriga cheia. Tudo alcançou maior valor que as pobres almas com cede de eternidade. Se a barriga está cheia está tudo bem, assim dizem os canalhas. Falei muito em canalhas, vou falar agora aproveitando a vênia, de quem brilhantemente usava essa expressão. Falarei de Nelson Rodrigues.
Porque o espanto leitor conservador? Do Nelson Rodrigues que era fluminense como o literato Octávio de Faria. Em um artigo o Nelson lembra de uma certa vez em que o Carlos Heitor Cony o arrastou para um canto e soltou: "Teu artigo de hoje está de um reacionarismo". Explico. O grande dramaturgo havia escrito sobre a fome de 1917, 18 e 19, ressaltando que a fome dos anos citados não tinha o apelo, o patético, a promoção que tinha em seu tempo e que segue até os nossos.
Seguindo, arremata Nelson: "hoje, há uma fúria. Quantos vivem da Fome? Por exemplo: d. Hélder. Sempre teve o gênio promocional... o d. Hélder anterior não tem o dramatismo, a potência, a forma do d. Hélder da fome. A fome tem-no feito".
Recordei do Nelson Rodrigues que falou da fome e que falou do d. Hélder, que por seu turno era progressista, assim como o Cardeal Suennens de quem falei em algum parágrafo mais atrás, o primeiro ganhou a alcunha de Bispo Vermelho, o segundo ficou famoso por ter repreendido o Papa Paulo VI por ocasião da encíclica "Humanae Vitae", pois entendia Suenens tratar-se de uma encíclica retrograda e queria o Cardeal que a Igreja andasse depressa. Esta é a característica essencial do progressismo católico: a Igreja tem que ir pra frente. Pergunto-me: para onde?
Os dois lançaram livro juntos. Não o li. Mas o Bispo Vermelho tornou-se corifeu da Teologia da Libertação e o outro um dos precursores do propalado movimento carismático, lançando em 1974 o livro "Une Nouvelle Penetecôte". Esse pulha segundo alguns era grau 33 da maçonaria. Eu não dúvido. O Pe. Luc J. Lefévre bem dizia: "as contestações vem se multiplicando de há tempos", e seguem se multiplicando.
Quando assistia uma dessas missas que parecem reunião de sindicato marxista ou as chamadas missas show, não outro era meu sentimento senão de saudades de um tempo que não vivi...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Terra dos Homens

Saint-Exupéry (1900-1944) pertence, no dizer de Michel de Saint-Pierre, à linhagem dos Maurras, Barrès, Bernanos, Montherlant, Drieu La Rochelle, Brasilach, Jacques Ploncard d´Assac, homens que souberam levantar a voz em defesa da condição humana, ameaçada pela tecnocracia totalitária, e o fizeram anunciando galhardamente verdades das mais necessárias para o homem do nosso tempo. Note-se porém que a defesa da condição humana levantada por homens da estirpe dos supraditos em tudo destoa do "humanismo" entoado pela ONU e pelos marxismos de todos os matizes que não passam de um arremedo de humanismo, mas assentada nas Verdades eternas marcadas no coração do todos os homens.


E agora aqui, na última página deste livro, eu me lembro daqueles burocratas envelhecidos que nos serviram de cortejo na madrugada de nosso primeiro vôo, quando nos preparávamos para virar homens, tendo tido a sorte de ser designados. Eles eram semelhantes a nós, mas não sabiam que tinham fome.
E há muitos homens assim, dormindo, sem que ninguém os desperte.
Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.
Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé sob a lâmpada do carro, contemplei, naquele vagão sem divisões, que parecia um dormitório, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se reviravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.
E assim eles me pareciam Ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.
Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nas bancas dos mercados. E eu pensei: o problema não reside nesse miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por faceirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ele, que hoje é uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esse montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entornar homens? Um animal ao envelhecer conserva sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?
E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para o outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento de seixos rolados pelo mar.
Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entornar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover com a ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.
O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.


Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o Homem.



SAINT EXUPÉRY, Antoine de. Terra dos Homens, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 138-140.

A plenitude sonhada

Gustave Thibon (1903-2001), que em minha modesta opinião foi o escritor mais completo do século passado traz nas linhas a seguir passagens luminosas que constam de seu livro "Nuestra mirada ciega ante la luz" (Rialp, 1973), versão espanhola, e cuja versão original foi publicada em Paris, em 1955. Thibon, como já salientado aqui foi um camponês francês, magnífico conhecedor de Aristóteles cuja obra aprendeu em grego, pensador e escritor autodidata, que em 1964 recebeu o Grande Prêmio Literário da Academia Francesa. Com a sutileza e clareza que lhe era peculiar nos parágrafos abaixo o autor interpreta em chave divina o desejo de felicidade que inunda o coração de toda pessoa: «Na realidade, todo mundo busca a Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar»




«Como falarei aos homens?», se perguntava Saint Exupéry pouco antes de que sua voz se apagara no silencio eterno. É o tormento de todo homem que intenta escrever, não pelo puro afã de reunir palavras, nem pelo desejo de difundir idéias, senão para que seus irmãos participem de uma verdade e um amor que vivem em sua alma com mais força que ele mesmo. Onde encontrar as palavras que designem, que alcancem a fonte do ser? Onde encontrar os términos que transcendam além de si mesmos? E, antes de tudo, que é o homem? Um ser que pensa, que ama, que vai morrer e que está certo que vai. Pouco importa que se esforce em esquecer-se, que tente vendar os olhos inutilmente com as aparências: os olhos da alma não se cegam como os do corpo, e o homem o sabe. É sua única certeza, a única promessa que não há de falhar, o grande paradoxo da vida, cuja suprema verdade se encontra na morte.
Faça o que faça e deseje o que deseje, tanto se se aferra ao passado como se corra para o futuro, tanto se se busca como se fuja de si mesmo, tanto se se endurece como se se abandona, na sensatez como na loucura, o homem não tem mais que um desejo e uma meta: escapar das redes do tempo e da
morte, traspassar seus limites, chegar a ser mais que homem. Sua verdadeira morada é mais além, sua pátria está fora de suas fronteiras. Mas sua desgraça estriba - e aí está o ponto dessa perversão que chamamos erro, pecado ou idolatria- em que, enganado pelas aparências e buscando o eterno ao nível do efêmero, se distancia ainda mais da unidade perdida, da plenitude vislumbrada entre sonhos.
Haveria que fazer ver aos homens a maravilha da realidade divina que seu sonho presente oculta. Fazer-lhes compreender que a fome de Deus se esconde nas coisas em aparência mais distantes do divino: suas ocupações cotidianas, suas paixões terrenas, até mesmo seu materialismo, porque a matéria só tem valor como sinal do espírito. Na realidade, gira o mundo em busca de Deus, já que todo mundo pede a terra o que está não pode dar. Todo mundo busca a Deus, posto que todo mundo busca o impossível. Se o supremo valor do homem consiste na superação do humano e na aspiração expressa ou tácita para o ser inefável que um Padre da Igreja grega chama «o mais além de tudo», nosso século não me parece indigno do beijo da eternidade. Talvez nunca como agora o homem sentiu-se amargamente encerrado em seus próprios limites. Assim como logrou a desintegração do átomo, há feito também estralar dentro de si todas as dimensões do humano. De tal modo se há esvaziado de seu equilíbrio natural e de suas seguranças terrestres que somente pode dete-lo contra o fundo do nada o contrapeso do absoluto.
Minha única ambição é convidar aos que me lêem a fazer coincidir seu olhar com está gota de luz eterna que é o vestígio e o gérmen de Deus em todo homem. Porque a morte - o único fato indiscutível do futuro- nos espera segundo a altura de nossos desejos, como uma noiva ou como um verdugo, e de todos os atos de nossa alma só subsistirá nossa participação naquilo que, por não proceder do tempo, não morrerá com ela. Cronos unicamente devora a seus filhos.
Por um momento me comprazia em ver ao homem tão despojado de si mesmo que não restava outro remédio senão acudir a Deus. No entanto, há outros momentos em que pergunto se ainda lhe resta substância humana suficiente para que possa prender nela o enxerto divino. O violentar de modo habitual os ciclos da vida, o desaparecimento progressivo das diferenças e das hierarquias, o indivíduo transformado em grão de areia e a sociedade em deserto; a sabedoria substituída pela erudição, o pensamento pela ideologia, a informação pela propaganda, a glória por publicidade, os costumes pelas modas, os princípios morais pelas formulas mortas, os pais por tutores; o esquecimento do passado tornando estéril o futuro; o desaparecimento do pudor e do sentido do sagrado; a máquina rebelando-se contra seu autor e recriando-o a sua imagem; todos estes fenômenos de erosão espiritual, aliados ao orgulho exacerbado de nossas conquistas materiais não correm o risco de conduzir-nos para esse grau limite de esgotamento vital e auto suficiência além da qual a piedade de Deus assuste, impotente, a decadência de tudo que é humano?
Como mostrar aos homens esta dimensão divina que, ao entregar-lhes o infinito, lhes curaria de sua aberração? Ao homem moderno, antes de lhe falar de Deus deve-se ajudar-lhe a dar-se conta do vazio e falsidade que encerram todos os ídolos pelos quais inutilmente tenta substituir a Deus. Há que fazer-lhe descobrir, como quer Santa Teresa, que seu desejo não tem remédio, que é insaciável e mais real que todos os objetos com os quais até agora tem tentado em vão satisfazer-se. Assim compreendido, o mesmo desejo o irá levando até Deus. O diagnóstico indica o remédio: analisando as causas profundas da sede que diretamente se chega a fonte.
Todos fomos criados para o divino, mas também para o sensível. Sonhamos ao mesmo tempo na plenitude espiritual e no amor humano e por isso e por isso facilmente somos enganados. Quando a beleza sensível se nos oferece, já não nos basta aceita-la como tal, quer dizer, como uma coisa efêmera e limitada, e lhe pedimos que sacie nossa sede de mistério e de absoluto. Esperamos dela um Deus a quem possamos trazer em nossos braços, a prova do espírito pelos sentidos e do eterno pelo tempo... Até que chega a hora inevitável e nos damos conta de que o que trazemos em nossos braços não é Deus, senão o nosso desejo desorientado mas incurável d´Ele.
Ditosos então se descobrirmos que esse ser impotente para saciar nossa sede sofre também nossa mesma sede, e deste modo lograrmos associar nossas duas misérias em uma única prece. Essa é a única possibilidade de supervivencia do amor humano. Não se trata de encontrar a Deus um no outro, senão de busca-lo juntos. A pobreza reconhecida e aceita nos leva para verdadeira riqueza, ainda que a emissão de falsa moeda só pode nos conduzir a ruína.
«Amor é a redução do universo a um só ser e o aprofundamento nesse único ser até chegar a Deus» (Víctor Hugo). A fórmula é extraordinária por sua precisão e densidade.
Reduzir em superfície (o universo se desvanece em aras de um só ser) e aumentar em profundidade (descobrimos a Deus através de um só ser penetrado a fundo). Em seu primeiro estágio, o amor é um pecado de idolatria (tu só); em segundo, já é a virtude da religião (Deus em ti). Toda alma se concentra em um só ponto desse imenso véu de aparências que chamamos universo, mas, nesse preciso ponto, o véu se desgarra e nos deixa ver a realidade divina.
Esta vida que amo com toda a ternura de um filho, com toda a paixão de um amante, me enche de dons que desbordam meus desejos, e ei de morrer com os olhos e o coração cheios de suas doces recordações. Mas, que é a recordação de uma imagem, mais que o reflexo e a promessa de um modelo?
Posso fazer algo melhor que desejar o modelo através de suas cópias? O mais puro que a terra tem me dado é o que me vinha de mais além da terra, e mais que um esboço de porvenir era uma chamada para a perfeição eterna.
O que me atraí para além da vida é esses fulgores de eternidade que a atravessam. Tenho sede da luz eterna da qual procedem esses fulgores efêmeros.
Na certeza da derrota, uma só esperança me resta: o Deus que me criou a sua imagem e semelhança me perdoará uma vez que em suas criaturas finitas nunca haja amado mais que a sua imagem infinita. Porque Te juro que jamais ei amado, que jamais ei buscado a ninguém mais que a Ti, que és a inocência infinita, a boca que não sabe dizer que não. As vezes posso ter modificado e confundido as distâncias e os planos, e ter afundado no barro ou me perdido nas nuvens, mas nesse barro só busquei o rasto de Teus passos e nessas nuvens a estrela de Tua luz. Se minha loucura traspassou os limites de Tuas leis é porque traduzia a impaciência de meu amor, e si desconheci os bens velados da terra foi por perseguir a inacessível pureza de Teus bens. É verdade que tive também meus ídolos, que me foram doces e próximos como o anoitecer e o leito do trabalhador fatigado: mas Tu estavas neles e atras deles, e minha adoração os há atravessado sempre para chegar a Alcançar-te. Castiga-me se queres, não tenho medo de Ti. Abre o deserto sobre meus passos e afasta de meus lábios todas as fontes: sempre minha sede de Ti me unirá a Ti.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Para onde vai o Islã?

Marcel de Corte


Para onde vai o Islã? Não parece errado afirmar que o Islã mesmo o ignora quase por completo. Esse grande corpo informe está despertando de uma longa letargia, as pálpebras fechadas, a mente entorpecida, os membros estirados e sacudidos aqui e acolá por sobressaltos involuntários. A história do Islã manifesta duma ponta à outra a estranha alternância entre torpor e exaltação.
A causa disso parece ser o atavismo nômade desse imenso agregado de povos: o Islã só se mexe e se agita quando encontra um condutor, um animador, um füher, um êmulo de Maomé. Sem a guarda do pastor com seus cães, o rebanho cai na anarquia e, pouco a pouco, na sonolência. O Islã é semelhante à limalha de ferro cuja força coesiva depende da ação do ímã.
Em outras palavras, o islã apresenta para o historiador e o sociólogo a imagem de uma força magnética sempre prestes a cair em inércia, se lhe faltar o dinamismo duma oligarquia dirigente ou a oposição duma resistência à sua passagem e expansão. As relações entre o Ocidente e o Islã, desde o séc. VII até hoje, são marcadas por fases de explosões irracionais e de estagnações também incompreensíveis. Como já dissemos várias vezes, o comportamento do discípulo de Maomé, salvo exceções, não conhece aquela medida entre o excesso e a carência, de que a inteligência grega, enraizada na ordem natural, impregnara o Ocidente há já muito tempo. O Islã é instável e descomedido. É notável que a civilização islâmica, em Bagdá ou Espanha, tenha conhecido momentos de grande esplendor, quando o dom que a Grécia legou ao mundo chegou até ela. Poucas culturas alcançaram ao mesmo tempo aquela efervescência vital e sutileza espiritual.
Essa união durou pouco: o Islã precipitou-se num movimento pendular, que podemos observar com maior clareza nas pessoas de seus adeptos, sob a forma de brutalidade explosiva revezada com uma inesperada e requintada delicadeza, ou vice-versa. É como se o Islã sempre tivesse de balançar entre as qualidades e os defeitos da barbárie, e as qualidades e defeitos da decadência.
Talvez encontremos a origem dessa instabilidade dentro da estrutura tipicamente religiosa da mentalidade islâmica e na antítese violenta estabelecida entre Deus e os homens.
Eu seria, sem Deus, mais vil qu’um bicho impuro, diz o Maomé de Victor Hugo. O Islã ignora o Cristo Deus encarnado, renovador da natureza humana assumida em sua pessoa. Maomé tem Cristo apenas por profeta. Ignora a noção de natureza renovada pelo Novo Adão. Não existe nada entre Deus e o homem. Victor Hugo exprimiu magistralmente, com outras palavras, a dualidade da alma religiosa islâmica, dividida entre o Céu e a Terra:
Filho, eu sou vil campo dos sublimes combates
Eu sou homem excelso, e homem de disparates,
O mal, dentro nos lábios, com o bem alterna,
Como é no deserto a areia e cisterna!
O islamismo não possui centro de gravidade. Não tem neste baixo mundo um ponto fixo. Não dispõe de critérios imutáveis, por faltar-lhe este Meio-Termo que é o Cristo entre o homem e Deus, e uma Igreja concebida como corpo místico, tal como Jesus Cristo a espalhou e comunicou. Oscila assim entre o fanatismo estrito, coagulando-se sob uma forma qualquer, e a pulverização entre crenças disparatadas, indo da mística até à superstição grosseira. A fé em Alá, dominante e exclusiva, mistura-se à uma multidão indefinida de seitas, enumeradas na Enciclopédia Britânica em três colunas de texto bem espremido.
As conseqüências políticas dessa atitude religiosa sempre vacilante e desequilibrada são imensas.
Já é lugar comum dizer que no Islã a política é apenas um prolongamento da religião. O temporal e o espiritual não são dois domínios distintos. O primeiro não se subordina ao segundo, mas se confundem. Apesar do atual processo de laicização das elites islâmicas – que vão se tornando incrédulas ou ritualistas e farisaicas - elas consideram o Islã como o mundo em si, sem fronteiras ou determinações originadas da situação terrestre do homem e da conseqüente diversidade dos agrupamentos humanos. O Islã desconhece a natureza humana e suas implicações, logo desconhece também a idéia de pátria e, no interior desta, a idéia de diferenciação hierárquica entre homens de funções desiguais. Não existe “casta” ou “ordem”, no sentido Ancien Régime: no Islã, há igualdade absoluta entre os fiéis. O mulçumano sente-se em casa onde quer que haja Islã: seu passaporte é sua fé, viva ou aparente. O marroquino ou o tunisiano não é um estrangeiro no Egito.
Assim, o Islã apresenta-se como uma sociedade sem classes, internacional ou, mais exatamente, “anacional”, onde os membros congregam-se imbuídos da mesma concepção das relações entre Deus e o homem, à maneira da sociedade sonhada por Marx, cuja instauração fora intentada pelos seguidores deste na Rússia. Bastaria o arrefecimento religioso das elites dominantes – um processo em curso desde o séc. XIX – para o Islã, assestando o olhar para a possessão da terra e as relações entre o homem e o mundo material, encontrar-se na mesma posição em que a Rússia. Não por acaso, um dos observadores mais sagazes do comunismo, o Sr. Jules Monnerot, apodou-o de “o novo Islã”. Nesse sentido, são bem acertadas as analogias entre as duas concepções de mundo.
Ademais, o Islã já exibiu no passado, donde tira sua exaltação presente, um espírito totalitário idêntico ao do marxismo. Tanto para ele como para o marxismo, a humanidade se divide em duas partes em tudo heterogêneas: os fiéis e os infiéis, os muçulmanos e os ocidentais. A filosofia materialista do marxismo é sem dúvida ainda inconcebível no Islã. Os comunistas muçulmanos são escassos. Mas essa pretensa impermeabilidade do espírito islâmico ao marxismo não vale mais que a imaginária discordância descoberta entre o espírito inglês ou escandinavo e a doutrina de Marx. Vemos na história recente a Grã-Bretanha e os países nórdicos, apesar de conservarem o verniz ideológico e elegerem uns poucos deputados comunistas, absorverem altas doses de marxismo edulcorado.
A realização da aliança entre a Rússia e o Islã, sob as nossas vistas, não vai contra a natureza. Ela origina-se de mentalidades que se correspondem e que podem vir a se identificar na confusão atual da história. Os americanos nunca interromperão essa afinidade, por meio do seu anticolonialismo pueril, se desconhecem o espírito muçulmano. Será fácil para a Rússia superá-los, ao apelar para a semelhança existente entre a atitude anti-européia do muçulmano e a atitude anticapitalista; será fácil, no momento oportuno, atiçar a primeira atitude, que já existe e se exaspera, no sentido da segunda, que ainda está informe, e daí englobar os Estados Unidos numa condenação contra todo Ocidente. Bem faria a diplomacia americana, sempre mais sensível aos elementos econômicos do problema que aos fatores psicológicos, se percebesse a astuciosa mudança de rumos.
A política estrangeira soviética não mudou desde os famosos episódios – já esquecidos das democracias, desmemoriadas! – entre Zinoviev e Enver Pasha, no Congresso de Bakou, a 1º de setembro de 1920. Ela oferece-nos os frutos dum esforço inabalável, bem diferente da diplomacia dos povos ditos livres, a quem os fatos obrigam a lastimáveis piruetas. As duas “guerras santas”, a da Rússia contra o capitalismo e a do Islã contra o Ocidente, vão acabar por se tornar uma só, se a América não abrir os olhos.
Esse quadro é bastante provável, porquanto a moral islâmica abre um campo mais vasto às paixões do espírito e ao ressentimento que a moral cristã. Eis a razão por que o Islã se vai insinuando nas populações primitivas da África: estas adotam a ética islâmica, por menos exigente. Não há quem negue, por outro lado, o florescimento do marxismo por onde se relaxe a moral. Ainda é verdadeiro aquilo de Rivarol: “se aos homens desobrigamos, os estragamos”.
Os futuros historiadores possivelmente considerarão a dissolução do Império Otomano, ratificada pelos tratados de 1918, e a estúpida destruição do Império Austro-Húngaro duas pesadas hipotecas a serem cobradas ao séc. XX. A antiga Turquia, saciada de conquistas – por sinal, bem modestas -, continha o avanço do Islã, do mesmo modo que a Áustria-Hungria esfriava a efervescência balcânica.
Além disso, esses dois sistemas constituíam um tampão contra o imperialismo russo. Hoje estamos pagando o preço dessa política cega, em que saíram ganhando o “idealismo” laico e as sórdidas preocupações econômicas. Tomara não nos seja o preço muito alto, já que, citando novamente Rivarol, a pior desgraça é a de merecer suas desgraças!
Em todo caso, é certo dizer, os nacionalismos árabes não possuem raízes nas tradições islâmicas, e evoluirão fatalmente em direção ao internacionalismo e ao pan-islamismo. A Rússia, sempre atenta, lhe dedicará mais e mais cuidados na proporção direta dos erros habituais da diplomacia dita atlântica. O único trunfo nas mãos do Ocidente é a debilidade do sentido de Estado em terras islâmicas. Hoje em dia, contudo, constroem-se Estados artificiais por meio da força. O Estado Ocidental, por seu turno, degenerou em Estado Providência, que vampiriza sua energia e suas reações vitais de defesa.


In: “La libre Belgique”, 28 de dezembro de 1956. Tradução: Permanência

Fernando Rodrigues Batista

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Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot