segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

VLADIMIR GHIKA - UM APÓSTOLO DOS TEMPOS MODERNOS

Pierre Gherman*


O igualitarismo, que pretende a extinção do princípio de autoridade, o horizontalismo, que faz da religião do Desenvolvimento a nova Redenção do homem (a "promoção social" acima de tudo); o ativismo, que nega, e por isso despreza, a vida contemplativa (oração, penitência, para quê?) – são as tônicas do "progressismo", melhor, do mundanismo, que invadiu a Igreja.
Ser e viver como irmão, sem concessões à demagogia igualitária; cuidar da vida material, mas sujeitando-a à primazia do espiritual; agir sempre com e por amor a Deus, fazendo da oração, vida, e, da vida, oração – assim é o cristão, o apóstolo.
CRISTÃO, APÓSTOLO COMO FOI VLADIMIR GHIKA NAS MAIS DIFERENTES SITUAÇÕES, NA PRESENÇA DOS GRANDES OU DOS PEQUENOS, EM MEIO ÀS PERSEGUIÇÕES OU SOB AS TORTURAS DO TOTALITARISMO COMUNISTA.



Foi num dia de Natal, 25 de dezembro de 1873, em um palácio de Constantinopla, que nasceu Vladimir Ghika, filho de príncipes reinantes da Moldávia. De origem principesca, desejou ocupar o lugar mais humilde no seio dos homens. Ocupou esse lugar, mas reina, entretanto, no coração e no pensamento de muitos romenos e de muitos franceses.
Jovem ainda, foi enviado para a França, para ali realizar seus estudos, em Toulouse, a princípio, em París, em seguida, onde seguiu os cursos da Escola de Ciências Políticas.
Educado na religião ortodoxa, sua alma profundamente fervorosa não encontrara na fé de seus antepassados o alimento que correspondia a seus desejos, nem o socorro espiritual que desejava; estava por demais atormentado pela procura da unidade entre os cristãos, que somente o Primado de Pedro pode realizar. Guiado pelo Cardeal Mathieu, então arcebispo de Toulouse, compreendeu que essa unidade só seria possível com a volta à Igreja Católica Romana. E, para encontrar a plena luz e a paz da alma, tornou-se católico.
Após estudos brilhantes, possuindo licenças em direito e em filosofia, obteve seu doutorado em teologia e quis ascender ao sacerdócio. São Pio X dissuadiu-o. Em seu sobrenatural conhecimento dos homens, o Papa entendia que Vladimir Ghika devia ficar no mundo em que sua ação, realçada pelo prestígio de suas origens, era suscetível de reconduzir seus irmãos à Igreja Romana.
A caridade guiou toda a sua existência. Foi assim que, em 1904, quando permaneceu em casa de seu irmão, Cônsul Geral da Romênia em Salônica, devotou-se ao cuidado dos doentes do hospital dirigido por uma admirável filha de S. Vicente de Paula: irmã Pucci.
Voltando a Bucareste, chamou a irmã Pucci para funda a Casa das Filhas da Caridade, que se tornou, em seguida, um grande centro médico.
Foi ainda em colaboração com a irmã Pucci que o príncipe Ghika organizou o lazareto para as vítimas do cólera durante campanha de 1913, quando a Bulgária atacava os Sérvios e os Gregos.
A influência de Vladimir Ghika foi aumentando cada vez mais nos meios políticos, literários e religiosos de seu país, em movimentos para os quais era procurado por motivo de suas grandes qualidades. Observava o preceito do Apóstolo: "Ser tudo para todos".
A primeira guerra permitiu-lhe prodigalizar seu incansável amor a seus irmãos em aflição.
Passam-se os anos e ele nada perdeu de seu ardente desejo de tornar-se padre de Jesus Cristo.
Em 1922, volta a Paris, onde seu irmão representa a Romênia. Volta impelido por sua afeição pela França, onde passou a maior parte de sua mocidade e que ele considera sua Segunda pátria. Fixa-se na Abadia Beneditina da rua de la Source.
Em 1923, por licença especial de Pio XI, com a idade de cinquenta anos, foi investido do sacerdócio tão desejado e para o qual estava admiravelmente preparado por uma vasta cultura, pela santidade de sua vida, por dons excepcionais que acusavam a marca da escolha divina.
Ele poderá inseria em seus "Pensées pour la suite des hours" este grito do Mestre que bem parece Ter entendido e que condicionará todos os atos de sua vida sacerdotal: - "Oh, meu padre, como podes tu Me sacrificar verdadeiramente e em toda plenitude, se tu, antes, não te sacrificaste verdadeiramente e em toda plenitude?"
E as páginas muito belas da Liturgie du prochain começam com esta comovente confissão:
"Vós podeis imaginar o que experimentei encontrado-me esta manhã no mesmo lugar em que Deus me permitiu tornar-se um de seus padres e onde, graças ao que me foi concedido aqui, acabo de tocar com minhas mãos o Corpo e o Sangue de meu Salvador, de misturar o arrebatamento de vossas almas e as intenções de vossa multidão à virtude de Seu sacrifício, na realidade de Sua vinda entre nós".
Começa, então, numa epopéia única: obscura e faiscante, miserável e suntuosa, lamentável e esplêndida.
Para se dedicar mais inteiramente a Deus e a seus pobres, o abade Ghika abandona sua parte do patrimônio familiar. Assim "desembaraçado", incansavelmente se consagrará a um apostolado, que encontrará sua fonte no aniquilamento de si ao serviço de todos.
Seu amor às almas, cuja elevação e salvação eram motivo de sua preocupação constante, sua afeição aos infelizes são tão intensos que lhe sugerem a mais sublime epopéia. Perde-se em Deus para não preencher senão um papel de instrumento dócil nas mãos de seu Criador, justificando um de seus "Pensamentos":
"Não tentes fazer de ti uma obra prima, mas um instrumento de felicidade".
Instala-se em Villejuif, em plana "zona vermelha", numa estranha barraca; edifica uma capela, comparável ao estábulo de Belém, na qual coloca Cristo ao alcance de todos. Na menor parte desta barraca de estrada de ferro, tornada habitação real pela presença divina, uma prancha móvel fixada no muro lhe serve de leito; para preparar sua magra alimentação dispõe de um fogareiro a querosene... Lá, ele passará as noites mais rigorosas do inverno, sem aquecimento, e confessará ingenuamente:
"O mais difícil é, de manhã, retirar dos cílios o gelo que os congela, a fim de poder abrir as pálpebras..."
Os primeiros contatos deviam ser rudes e férteis em choques. Mas a sua doçura, sua ternura, seu heroísmo, sua grande simplicidade, bem como seu delicioso sorriso deviam acabar por operar transformações, metamorfoses, reviravoltas que proclamaram o todo poderoso nitidamente a onipotência da graça:
"Senhor, se Vos peço às vezes a marca sensível de Vossa graça, não é para estar mais seguro de Vós, é para estar mais seguro de mim".
Os benefícios espirituais se espalhavam sobre os jovens refugiados armênios, poloneses, italianos, bem como sobre os trapeiros e os "maus rapazes", dos quais chegava a fazer-se estimar.
Príncipe, que renunciara às dignidades humanas e suas honras, vivia uma vida mais que miserável, oferecendo alegremente a Deus suas preces, suas penitências, seus sacrifícios, para a conversão de seus irmãos separados.
Tudo o que se tornou sua vida terrestre, toda esta miséria, ele deve abandoná-las, não sem uma imensa aflição. Com efeito, Mons. Verdier, então arcebispo de Paris, confiou-lhe o reitorado da Igreja dos Estrangeiros, rua de Sèvres, porque o chefe da Arquidiocese avaliara o potencial de seu subordinado e o que podia esperar de seu recursos em favor dos "desterrados" de todas as raças.
Face a outro desmoronamento de valores, Vladimir Ghika deve agora freqüentar a alta sociedade, rever aqueles de quem quisera fugir, reatar com as pessoas suscetíveis de auxiliá-lo em sua nova tarefa: Jacques Maritain, Paul Claudel, Fraçois Mauriac, Henry Bordeaux, Francis James, Zeller.
E, apesar de sua resolução de passar despercebido, foi elevado por Pio XI à dignidade de Protonotário Apostólico.
Monsenhor Ghika realizou então diversas missões internacionais, no Japão; em seguida, na qualidade de membro das Comissões Diretoras, tomou parte nos Congressos Eucarísticos internacionais de Buenos Aires, de Manilha e de Budapeste.
Achando-se em Paris, prega a quaresma na Abadia Santa Maria, onde passa horas rezando diante do altar da Virgem ou ao pé do altar portátil, em adoração durante toda a noite de Quinta ou Sexta-feira Santa, conformando-se, dizia ele, ao puro costume do Oriente.
Durante o verão de 1939, foi à Romênia, junto aos membros de sua família, de que se afeiçoara com uma ternura engrandecida ainda mais pelo Amor Divino.
Transtornado pelo espetáculo da miséria dos refugiados poloneses, com a licença do Cardeal Suhard, então Arcebispo de Paris, foi-lhe permitido continuar no mesmo lugar para aliviar – como outrora na zona parisiense - a multidão de almas desamparadas, às quais prodigalizava os socorros do Espírito e os do corpo.
A Segunda guerra mundial vai permitir-lhe estender seu campo de ação em Bucarest, multiplicando suas intervenções junto aos poderes públicos, em favor dos prisioneiros, ocupando-se dos estudantes, para os quais realiza conferências, prega retiros na Igreja romena, de tiro bizantino, da rua de Pologne.
Muitos desses estudantes, expulsos pelas perseguições soviéticas e agora exilados, lembram-se do encanto distinto, da delicada compreensão das necessidades de cada um, da doçura espiritual que caracterizava esses encontros.
Com esta reflexão dos livros de seus "Pensamento" cristaliza seu amor do próximo:
"A todos os recém vindos que cruzas na sequência dos dias, nos caminhos da vida, olha-os, para lhes dar lugar em tua alma, com o olhar que tinha Patriarca de outrora para o hóspede, o hóspede de passagem sempre misterioso e sagrado. No plano divino, nenhum encontro é indiferente, e lá deve ainda exercer-se esta virtude em ocasiões agora desvalorizadas, esta velha virtude da hospitalidade...".
Quando, em 1944, Bucarest conheceu os bombardeios que fizeram milhares de vítimas, recusou-se a deixar a cidade, para absolutamente não deixar, numa abnegação total, de prodigalizar o conforto da caridade àqueles que a adversidade ferira.
Estava na ordem estrita do plano divino que semelhante existência teria que acabar pelo maior e mais belo sacrifício, que é o de dar sua vida por aqueles a quem se ama...
Esta linha do livro de seus "Pensamentos" resume perfeitamente o que el experimentava:
"Quem se despoja por outrem, se reveste de Cristo".
Estamos em 1948. Os comunistas apoderaram-se da Romênia, onde instauraram o regime do terror. Monsenhor Ghika encontrava-se no meio de seus irmãos ameaçados. E, quando seu irmão quis levá-lo, Monsenhor Ghika recusou e preferiu ficar onde estavam aqueles que sofriam; previa que o sofrimento iria exigir o sacrifício total. Adivinhava as infelicidades que iriam abater-se sobre sua Pátria e o encarniçamento que o usurpador ia desenvolver para subjugar os espíritos e esmagar as almas.
"Sem a presença de Monsenhor Ghika, que seria de nós?" – repetia-se. E as conversões ao catolicismo se multiplicavam.
Até 1952, preencheu as funções de capelão das Irmãs de S. Vicente de Paulo, celebrando ostensivamente a missa todos os dias, para, em seguida, se devotar aos doentes, aos perseguidos, aos infelizes, confortando, convertendo, batizando, a despeito da apertada vigilância e do rigoroso controle dos milicianos comunistas, que observavam cada gesto do incansável homem de Deus.
Os comunistas tomaram medidas para por fim à sua atividade. Colocado a princípio em residência vigiada, forçando o respeito de seus carcereiros, foi solto em razão de sua idade avançada: acabava de completar 80 anos.
Ia ser preso em seguida por um incidente tão estranho quanto típico dos métodos de certo sovietismo: na rua, Monsenhor Ghika aguardava que fosse dada passagem aos pedestres. O policial de serviço, que percebera seu cansaço, considerando sua pobre sotaina surrada, sua estatura curvada, sua barba e seus cabelos brancos, tomou-o pelo braço e, conduzindo-o ao passeio oposto, pediu-lhe sua benção...
Não foi absolutamente revelado o que custou a esse homem aquele ato de coragem, mas a cena não despercebida de certos espectadores animados de outra coragem, que se apressaram a denunciá-la aos senhores do momento.
Após um odioso julgamento sumário, que o condenou a 30 anos de detenção, Monsenhor Ghika foi aprisionado num dos mais abjetos calabouços do forte de Jilava, onde teve de sofrer sevícias que tornam os que a ordenam, ou simplesmente as toleram merecedores da condenação ao pelourinho.
O prazo marcado por Deus para a glorificação de seu servidor estava próximo.
Ele, que nascera num palácio, morreu no calabouço de uma prisão soviética, vítima de um requintamento de vingança em ódio da Fé.
Como quisera que sua vida de padre se escoasse no esquecimento, seus derradeiros momentos foram ignorados. A notícia de sua morte só chegou ao conhecimento de seus parentes a 16 de janeiro de 1954, em terras onde reina ainda o respeito pela dignidade humana. Sua vida foi, assim, um testemunho da caridade evangélica, realçada pela coroa do martírio, que esta prece, extraída do livro de seus "Pensamentos", já pressentia:



"Mortos e poeiras, bendizei o Senhor,
Minha morte, bendize o Senhor,
Meu alimento, bendize o Senhor!
Coisas que nascerão de mim quando
Eu não for mais deste mundo, bendizei o Senhor,
Silêncio em torno de minha memória,
Bendize, tu também, o Senhor...
Minh’alma, minh’alma que nunca deverás morrer,
Grita tua eternidade já começada, bendizendo
Desde esta hora, eternamento, o Senhor!"



*O autor do presente texto foi um dos grandes pensadores católicos da Romênia ao lado de artista Paul Scortesco.


Texto transcrito da revista HORA PRESENTE, Ano III, Maio de 1971, N° 9, p. 231-237.



Fernando Rodrigues Batista

Quem sou eu

Minha foto
Católico tradicionalista. Amo a Deus, Uno e Trino, que cria as coisas nomeando-as, ao Deus Verdadeiro de Deus verdadeiro, como definiu Nicéia. Amo o paradígma do amor cristão, expressado na união dos esposos, na fidelidade dos amigos, no cuidado dos filhos, na lealdade aos irmãos de ideais, no esplendor dos arquétipos, e na promessa dos discípulos. Amo a Pátria, bem que não se elege, senão que se herda e se impõe.

"O PODER QUE NÃO É CRISTÃO, É O MAL, É O DEMONIO, É A TEOCRACIA AO CONTRÁRIO" Louis Veuillot